"Só a chuva faz isso por mim"

- Mas e a chuva? A chuva não era algo que te fazia bem? Pensei ter lido isso em algum artigo seu publicado numa dessas revistas menos criteriosas, de nível reflexivo mais rasteiro...

- (risos) Sim, é verdade. Publicamos muitas ideias nessas revistas mais baixas, que rastejam lá onde o lugar comum reina, ou pelo menos onde elas margeiam o trivial. Nunca nos incomodamos, nem eu, nem ela, nem eles, de pensar junto com o comum. É que pensar comum, pensar sem requintes, pensar linearmente nos dava a doce sensação de não ter te arcar com a responsabilidade dos rococós filosóficos que levam alguns a abraçar cavalos. Abraçando cavalos seremos notáveis? Abraçando cavalos seremos dignos de publicações mais elevadas, hosana nas alturas, dos l'enseignement supérieur? Sobre a chuva fizemos algumas reflexões, sempre muito secas – pra não perder o trocadilho –, nunca muito profundas. Nossa questão nunca foi a chuva em si, mas a água e a maneira como que ela se manifesta. Sempre detestamos água: mar, rio, chuveiro, cachoeira, lago, banheira, balde, ribeirão, torneira. Consideramos a água traiçoeira. Mas a chuva em especial era algo que experimentávamos com o fervor do romantismo. A chuva sempre nos aparecia com camisas molhadas, transparentes, grudadas ao corpo e com gravatas encharcadas, com cabelos encaracolados pingando água sobre a barba rala. Nunca experimentamos com a chuva qualquer tipo de privação: toque de recolher ou estado de emergência. Acredito que tu estejas te referindo a uma outra chuva, que não tem a ver com água nem com umidade, mas que é igualmente traiçoeira: chuva de críticas, chuva de desaprovação, chuva de incompetência, chuva de insuficiência, chuva de não. Bem... essa chuva nunca nos fez bem, mas sempre nos catapultou para um outro patamar na espiral. Com uns ferimentos no ego aqui e ali, mas nunca nos acomodamos, nunca permanecemos inertes com essa chuva. Porque desde sempre essa chuva de incompetência nos desabrigou, nos soterrou, nos desalojou. Nunca voltamos pro mesmo ponto onde habitávamos depois que ela passou por nós. E, de fato, mesmo não sendo úmida, ela nos afogou muitas vezes. Mas acredito que lá nesse artigo que tu leste, nessa revista menos criteriosa, margeamos um pouco a ideia de que o que subjaz na nossa existência enquanto autores e autoras que somos é desde sempre uma profunda inconformidade com o que já está e um sincero desejo de multiplicar o que virá. Nenhuma novidade até aí. Mas é que me lembrei de quando eu era criança, de quando caíam tempestades tremendas lá na cidade onde nasci, eu ficava ansioso olhando pelo vidro da porta dos fundos e velando a casa onde morava minha avó. Porque era uma casa de madeira que ficava no terreno contíguo ao nosso, e lembrei que de lá onde eu zelava pela casa da minha avó eu pedia pra que a chuva não derrubasse a casa onde ela morava. Supunha a chuva forte e a casa da minha avó, frágil. Porque já desde essa época nós sabíamos que a chuva, qualquer que seja, nunca deixa as coisas onde se encontram, nenhum macaco permanecia em seu galho, nenhum morro mantinha-se intacto, nenhuma vida era poupada. E com chuva também eu me dei por conta de que esse ou aquele não poderia mais seguir sendo meu companheiro; assim como eu tinha sabido, não sem dor, que a chuva tinha a potência de arrastar a casa da minha avó, eu também sabia que quando eu chorasse – que quando eu chovesse – por causa de algum deles, quaisquer deles estavam fadados a soterrarem-se em mim, a desalojarem-se. Se havia chuva em mim, havia desabrigo – de algum deles talvez, mas certamente de mim mesmo. Minha concepção de masculinidade inclui, isso se já não supõe desde sua matriz, uma certa feiúra. Aqueles homens que não se tornam feios ao longo do tempo não têm condições de permanecerem ao meu lado sem que sejam deslizados do alto de seus morros. Minha concepção de corpo pede, isso se já não exige como pré-requisito, uma certa dimensão de fragilidade. Aqueles homens que nunca adoecem ou que jamais se machucam estão fadados a serem abandonados como carros enguiçados pela lama em ruas inundadas. Só a chuva faz isso por mim: me cinde, me incorforma e termina, mais tempo ou menos tempo, por me multiplicar. Talvez nessa revista menos criteriosa esteja publicada essa simples confissão.