Sem fins nem começos

Para não precisar fazer a arqueologia dos problemas que nos levariam ao ódio e à ojeriza, preferimos fechar delicadamente a porta pela qual entramos naquela sala. Para não ter a obrigação de escavar razões e situações no tempo passado, para não precisar mostrar motivos já mortos, fossilizados, que justificassem nosso desprezo mútuo, preferimos sabiamente dizer ‘até logo’ num momento em que abundávamos (será? não mais...) de admiração e carinho recíprocos. E tivemos sucesso.
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O fim de alguma relação não é identificável por si mesmo. O fim de alguma coisa não remete a si como uma evidência ou fato comprovável. O fim não existe porque, de certo modo, seu começo também é fruto de uma ilusão, ou de uma certa necessidade que temos em pôr uma marcação, erguer um obelisco em algum lugar, assinalar no calendário algum dia que nos faça lembrar de onde e de quando tudo começou. O fim depende do início, mas tal como o começo, o fim também é fruto de uma ilusão.
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O começo nunca é o começo per se porque há condições que nos fizeram estar ali naquele instante, daquela forma, naquele lugar específico. Há condições que nos apresentam escolhas, e só fazemos as escolhas que podemos fazer. Eu, com 27 anos, bêbado, numa festa freqüentada por muitos rapazes da mesma idade e com o mesmo interesse homoerótico são condições que me apresentam algumas escolhas, enquanto que descarta outras. Faço deste dia e deste lugar o começo.
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Mas o começo não é localizável, nem fixo, porque ele é uma circunstância, ele é um percurso, um caminho seguido. O começo que nós vulgarmente chamamos de ‘aniversário’ é apenas um nó em que as condições de escolha se colidem. Isso não o faz menos importante, todavia. Mas sem dúvida, pensar o começo como um certo momento de adensamento de condições faz com que o próprio fim seja repensado: repensado não como um ponto final, mas como uma reticência ou, no máximo, uma vírgula. O fim e o começo repensados colocam um ponto de interrogação (a dúvida) justaposto ao ponto de exclamação (a certeza). Não tendo certeza do começo, portanto, também não temos certeza do fim.
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A incerteza do fim tampouco significa arrependimento ou possibilidade do vai-e-volta. A incerteza do fim não significa necessariamente um ‘eterno retorno’, ou a chance de sempre reatar. O caráter difuso do fim serve mais como agente de transformação que como alternativa de re-estabelecimento do vínculo. O fim insere novas problemáticas nessa relação que termina e oferece novas condições de escolha. Essas, por sua vez, nos levam a novas relações; o fim desta é também o começo da próxima.