Degenerescendo

Oi, mãe; oi, pai.
Não posso escrever muito, pelo menos não tudo o que tenho.

Se é verdade que nunca falei, que nunca disse nada com todas as letras em sequência inteligível, também é verdade que nunca escondi, que nunca dissimulei. Essa forma de lidar com o não dito mas visível lhes é estranha. Não os culpo: apenas os chamo à responsabilidade de entender outras maneiras de habitar o mundo que não as suas próprias, que não apenas as suas próprias.

Eu formulei frases ótimas para dizer-lhes, frases cheias de verbos. Eu as esqueci. Eu continuo pensando nelas, construindo argumentos. São textos de teatro. Não lido com improvisações. Decoro as falas. Eu as esqueço. Gaguejo em frente à plateia. Devolvo-lhes o dinheiro.

Por que razão eu deveria me arrepender da conduta que venho adotando até então? Muitas respostas: desde os rasgos da boca e do pulmão ao sêmen não derramado. Desde os silêncios, silêncios de reticência que sempre se encarnavam em olhos cabisbaixos que olhavam para o chão, até as sungas não usadas e as camisetas não tiradas, o corpo não descoberto, até as viagens abortadas e as rotas de fuga, os atalhos, as noites trancadas nos quartos de hotéis anônimos. Desde passaportes feitos e nunca usados em 10 anos. Desde histórias falsas sobre baleias voadoras e músicas de dormir como “Boi da Cara Preta”, desde amigos imaginários que nunca foram bem-vindos lá em casa. Até namorados que foram muito bem-vindos, até pratos imensos de comida, até as noites sem ar-condicionado no verão, até a primeira taça de vinho aos 15 anos de idade, até os 11 anos de aluguéis pagos, até as roupas que serviram para cobrir o corpo, até os telefonemas. Muitas são as razões: desde o celibato forçado até o celibato voluntário. Desde o assassinato da criança que eu era em nome do adulto prematuro. Desde a vergonha endereçada até a vitória inesperada, ao amor pela chuva e pela cama quente no inverno, ao amor pelo vinho e pelo banho quente no inverno. Até a chuva batendo na janela, que eu escuto sozinho, até a cama quente vazia, até a garrafa de vinho não compartilhada, até o banho anônimo e silencioso, quente, no inverno. Desde o amor por aviões até a reserva medrosa em relação às praias e às areias, às águas em geral. Ainda ouço gente dizer “esse guri é poeta, essa bicha é poetisa”, mas eu sei que vou morrer a sós com meu corpo, sem mediação nem consolo, e já não sinto mais medo disso.

É essa vida toda que eu tenho que mudar agora e é demais para eu fazer em tão pouco tempo. Eu sobrevoarei uma por uma de todas as minhas cisões e contracorrentes. De todas as minhas vergonhas eu vou procurar me esquivar, e são muitas, andarei em ziguezague. Eu vou pra fora, pro lado de fora, rarefeito. Não é longe, é aqui do lado, do lado de lá da minha pele.