mudei todas as senhas - de email, de internet banking, da única rede social da qual participo, dos serviços profissionais online. escolhi um símbolo que, para mim, remete à transformação em corpo celeste de quem me deixou. todos, em bem da verdade, me deixaram; mas esse foi o primeiro. teria sido diferente se ele ainda estivesse aqui. eu não seria mais feliz, tampouco ele. eu apenas me satisfaço em me angustiar com pensamentos sobre o quão diferente seríamos. quero descrever precisamente isto: a satisfação da angústia em pensar ser diferente, em reconhecer que poderia ter sido de outra forma - que não é agora, que não será depois. mas que poderia ter sido. talvez a descrição mais perfeita seja precisamente verbal: poderia ter sido, o passado bifurcado, não realizado, daquilo que já aconteceu. o futuro de um passado abortado por escolhas de minha quase inteira responsabilidade. a descrição não pode se dar por adjetivos. não há palavras - ou há muitas, difusas, que só cobrem parte do imenso significado do que sinto - que possam caracterizar o esvaziamento provocado pelo fracasso em assumir as escolhas improdutivas que me separaram daquele que eu poderia ter sido. o poderia ter sido é angustiante e é de minha quase inteira responsabilidade o fato de não ser e de nunca vir a ser. esse lugar verbal do não ser, do poderia ter sido e do nunca vir a ser é morno como coisa média sem serventia, sem utilidade, objeto ordinário desprovido de franja alguma que permita e estimule a criatividade do mundo da vida. a tristeza derretida, lânguida, de quem escora a cabeça em paredes para não cair desmaiado de impotência no chão, de quem arrasta os dedos esticados como chicletes velhos grudados na sola do sapato porque não se mantém em pé. encosto-me em qualquer coisa que me pareça firme, nem que seja por alguns segundos, para não soçobrar. não cabe a pergunta "mas, agora, o que se é?". tal pergunta não cabe neste cadinho, nesta maloca, nesta grutinha escura e úmida do que eu sou agora. sou pequenino e esmagadinho, coisa diminuída e rebaixada pelas curvas tangentes às boas escolhas, nas quais me acomodei. de minha quase inteira responsabilidade. pressionado pela pressão atmosférica do mau encontro, puxado pela atração gravitacional da farsa escandalosa. por meio de quais demônios eu me conecto com o mundo? essa é uma pergunta que cabe na minha cela. a resposta sai fininha, espremida entre as paredes deste cubículo de vida que se fecham e comprimem meu corpo todo a ponto de macerar meus pulmões e extrair das minhas cordas vocais apenas sons felinos:
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