[...]ogou o corpo do homem no mar. ele estava sem vida. mas ela lembrou de quando o conheceu, de quando ele assim chegou, de quando ela aceitou, de quando eles pegaram o barco e foram a alto mar. ela pôde beijá-lo e dar despedidas da vida aqui, homenageá-lo. pergunto-me se falta um pouco de homenagem na vida hoje. se falta um pouco de reverência, de silêncio frente ao corpo que não fala mais, que não age mais. se falta um pouco de solidariedade na nossa perspicácia de saber-nos mortais e findáveis. toda luz, toda rua e esquina, e o chão por onde passei não teriam sido o espaço contraído de um belo amanhecer no qual eu e os cheiros do lixo com vermes poderiam ter vibrado de modo a transmutar o resto em tudo? não terá sido isso toda a história da natureza? perdoe-me, mas ajoelho apenas para aqueles que despem-se. perdoe-me, mas gozo apenas para aqueles que estão nus no luar. queira-me, e te condeno a navegar. cuidado com o mar, com as lagoas e com os barcos em geral. eu os uso para matá-lo. e o mato. te quero silencioso como fumaça, adentrando meu quarto. te quero móvel, doce, macio. te mordo. quero tudo da grama, e me ajoelho nela, para tirar de vós aquilo que há de mais vivo. quero que saibas que estou aqui, ajoelhado. e que me queiras. e que a burka e a vergonha sejam apenas a alegoria para tu me querer mais. e não quero casar. nem te trazer pra minha casa. quero que tu esteja exatamente onde estás, encostado na árvore com a bermuda nos pés, seminu, convidando a mim e o mundo para estar entre as coisas que produzem arrepios. quero tudo que há em ti, e as pequenas canecas e os panos de prato, os bolos de pó debaixo da tua cama: quero tudo de ti, os sons de quando tu acorda e peida, o mijo espirando na água do vaso, o cuspe desnecessário para dizer que ocupa um mictório. quero tudo. danço e regojizo nas saliências da tua camiseta, que apontam para uma tristeza e que sei dúbia. tu não és infeliz; és apenas sozinho. verte de mim uma água morna radiante. piso no chão de madeira marchetada: levanta o taco secular, beija a árvore morta. sapateio em milhares de anos de seiva grossa. agora tenho uma dívida histórica com a natureza e preciso drenar qualquer coisa (seiva, saliva, lágrima, esperma) que me permita saldar o débito. pode ser qualquer secreção do corpo - mas terá de ser daquele que amo. a única breve informação que poderia dar a meu respeito, para qualquer marciano ou extraterrestre que aqui pousar, é que eu não extraio coisas de quem eu amo. eu produzo a partir do quem eu amo, eu monto e manufaturo o mundo junto de quem eu amo. não traga sua vergonha para habitar tudo isso que construí para mim e para quem eu amo (embora seja difícil e demorado dizer quem eu amo). se deus existisse, ele me quereria como seu embaixador. mas como ele não existe, continuo andando pelo canal de São João Del Rei achando-o lindo. mas como ele não existe, eu continuo bebendo cerveja até perder a noção de espaço (e cair de boca aleatoriamente). mas como ele não existe, eu permaneço na dúvida: com isso eu sou verdadeiramente mau? eu sou. sei que sou. suaves são as tintas pintadas por alguém que desconheço: não há coisa alguma de mim nelas. razão pela qual não penduro luminárias na minha casa. venha comigo e habite-me: invada e esteja-se: faça sua inteira adesão ao espaço que sou, às palavras que digo, ao cheiro que tenho: deite-se em mim: fale com minha língua, roçando nela: durma comigo. dormir é o ato mais puro. quede-se com sono. cheira-me o pescoço e durma. sinta-se livre para estar em minha presença. prove-me que não sou um monstro. ronq[...]