era um sábado. manhã fria, chuvosa. o som dos pingos oscilava entre "romântico" e "melancólico". ele acordara às seis e treze, sem coisa alguma para fazer. lembrou do homem. teve a certeza de que, para o homem, o som dos pingos de chuva cravava no centro da definição de "romântico". perdeu alguns minutos olhando pela janela, compondo o corpo que deveria estar com o homem naquela manhã. não era o seu, por certo, pois o homem o havia rejeitado. perdeu mais alguns minutos elencando partes e características do seu próprio corpo que o homem teria detestado. antebraços finos; gordura abdominal; glúteos flácidos; pescoço longo; olhos inchados. marcou horário na academia. preparou café e tomou uma xícara, sem açúcar. a chuva engrossou: o homem deveria ter apertado a conchinha, deitado na cama quente. cogitou a hipótese de que, talvez, o homem o tivesse rejeitado não apenas pela sua aparência e consistência físicas, mas também pela sua classe social. morava num apartamento alugado onde não incidia luz solar. metade dos móveis não eram seus. ele próprio ajoelhava-se para limpar o banheiro e o vaso sanitário uma vez por semana. o cartão do sus estava sobre a mesa, junto com guias para agendamento de consultas. era pobre, afinal? (pobre marca horário na academia?) encheu mais uma xícara com café e, daquela vez, misturou uma colher de chá de açúcar demerara e mexeu o líquido com uma das duas, apenas duas colheres que dispunha. (pobre compra açúcar demerara?) no primeiro gole pensou em acender um cigarro: chuva, frio e café pediam por cigarro. e pensou em vinho. (pobre pensa em vinho?) sabia que o homem havia tomado vinho com o outro na noite anterior em um jantar que acertava em cheio na definição de "romântico". riu de dor. e pensou em cerveja. e pensou na sua própria pança, cuja responsabilidade era sua mas também da heineken e da stella artois. ele sofria mas bebia bem. a chuva não parava. desejou ser amigo de bridget jones. o homem saberia como aproveitar um sábado frio e chuvoso. vestiu uma calça de moleton, uma camiseta branca manchada na região das axilas, um casaco, meias e chinelos. saiu do apartamento, do prédio, sem guarda-chuva. foi até a lanchonete cuca real, comprou marlboro e um isqueiro vermelho, para lembrar o inter de porto alegre. pediu dez heineken long neck; só tinha brahma. who cares? levou para casa doze latinhas brahma. higienizou todas com álcool setenta por cento e as colocou na geladeira, que precisava ser descongelada. depois da primeira baforada do primeiro cigarro, desmarcou academia. a chuva parara. o homem deveria já ter feito sexo àquela hora; imaginava-o tomando banho com outro. toda a delicadeza de um dia como aquele - sábado, chuvoso, frio - lhe escapava. a sujeira do tabaco se espalhava por dentro dele, pelas suas veias e artérias. e a bunda por mais um dia mole e os olhos por mais um dia empapuçados. soube-se pobre: sozinho e classista; arrogante e preconceituoso. habitava o coração de uma palavra ainda não inventada para o sentimento de.