hoje meu coração disparou PARTE III - alínea b

 [a trilha sonora deste trecho é "grávida"]

"não vai ter chá de fralda merda nenhuma, mermão", gritou a Pequena. ela falava ao telefone com a família, do RJ, e negociava a vinda deles para conhecer o rebento. com os meses passando, ela me dava notícias a conta-gotas das opiniões e expectativas sobre a criança - e sobre nós, os pais. perguntavam pra ela como era possível um viado engravidar uma mulher. ela respondia: "é possível porque sou muito fértil". uns queriam uma guria; outros, um guri. os motivos para desejarem um ou outro eram invariavelmente machistas: gurias sofrem mais, é mais fácil de criar guris. as razões de ser mais sofrido ou mais fácil permaneciam inquestionadas. eu dizia que a gente criaria nossa criança tendo como critérios a honestidade e a responsabilidade - eu tinha excluído o amor e a humildade porque não combinavam em nada com a própria Pequena. eu nem tocava no tema da liberdade, pois nela eu não acredito mesmo. a Pequena ouvia eu falar isso e me olhava com desdém. ela nunca dizia como queria criar sua criança - sua criança, ela afirmava, nunca a nossa criança. eu sempre respeitei, pois reconhecia nessa linguagem uma afirmação preta, feminista. e a sustentava. à Pequena caberia o lugar do corte, da separação; a mim, o da religação, da comunhão. nós dois só concordamos com orgulho em um aspecto: nossa criança seria preta.

a Pequena não queria saber o sexo da criança. nem eu. nada que estivesse ligado àquela biologia, àquele amontoado de carne, definiria o gênero daquele ser. a Pequena achou que assim estaríamos afirmando a liberdade da criança. um dia eu disse que ninguém era livre, nem a nossa criança. ela respondeu: "a minha criança será a pessoa mais livre deste mundo". e foi. a criança da Pequena pode ser tudo, pode ser todos, pode ser todes. eu, como pai, só queria que a criança pudesse ser ela/ele mesma/o, com suas dores e lutas, e vitórias, e choros. eu queria que a minha criança tivesse história para contar de si já desde muito jovem. porque quem tem história pra contar de si é quem se joga na vida. e eu queria isso pra minha criança porque essa seria a herança ética da mãe. uma mulher que é uma força da natureza, uma tempestade. eu também sou uma força da natureza, mas de outra ordem. eu sou a terra e a rocha, aquilo que sustenta. a minha herança ética seria responsabilidade pelas escolhas. os progenitores perfeitos, pois.

já era vigésima, vigésima primeira semana de gravidez. a Pequena e eu tínhamos comprado um berço de madeira. combinamos de montá-lo num domingo. chovia, pois era março. eu me embrenhei por entre parafusos e martelos. suava. tirei a camiseta. me senti homem: seminu, construindo a cama da minha criança - digo, da criança da pessoa que me pediu em namoro. pensei que eu não havia sido homem com Nestor, em nenhum momento. pelo menos não na intensidade com a qual estava sendo com a Pequena. grávida, eu sentia mais tesão nela. ela, pelo contrário, se afastava. no entanto, no momento em que terminei de montar o berço, a Pequena me perguntou: "vamos morar juntos?".