hoje meu coração disparou - PARTE III

eu e a Pequena trepamos três vezes por semana, por três meses. ela chegava na minha casa como uma pombagira de rua. no início eu ignorava com desprezo sua intensidade. achava que era só uma casquinha que ocultava o vácuo e a dor da vida que a trouxe até mim. ao final dos três meses, percebi que eu não estava tão equivocado, mas que tampouco acertava no alvo. o alvo da Pequena era móvel, cigano; quando eu acreditava ter encontrado uma fragilidade, algo mais intenso vinha em seguida que dirigia minha atenção para outra paisagem, e outra, e outra desse cenário em tempestade. 

ela entrava pela porta jogando a bolsa no chão, tirando os sapatos, deixando um na cozinha e outro no banheiro. às vezes ela não usava sutiã, e eu me perguntava como sustentar aqueles encontros. mas seguia encontrando. ela tomava banho e deixava o tubo de shampoo de ponta-cabeça. ela tomava água em diferentes copos, que ia esquecendo em cima da mesa, da escrivaninha, da geladeira. ela abria latinhas de cerveja e deixava pingar o líquido no sofá. ria quando isso acontecia. foi introduzindo o caos aos poucos, sempre me perguntando se podia, acreditando que eu nunca diria “não”, e eu consentia. de tão revolucionária com sua própria vida, me pediu em namoro. talvez acreditando que eu não diria “não”. e eu não disse.

viajamos. algo parecido com uma lua-de-mel, mas com muitas drogas. até hoje não sei se é possível fazer uma lua-de-mel com drogas porque aquela não foi inteiramente uma lua-de-mel. nem tão lua, nem tão mel com os sintéticos, lisérgicos e estimuladores. nada com a Pequena foi inteiramente algo. havia sempre um deslize ou um vazamento, uma escorregada: uma ideia que se perdia nas suas divagações; uma espuma de sabão que escorria na louça enxaguada; um olhar para a tevê quando eu me declarava; um bolo de cabelos num canto recém varrido. ela parecia não-toda. não porque fosse incompleta, mas porque ela desviava. ela estava ali, mas também estava em outros lugares. ela sempre pegava um detour, um atalho para fazer o que queria. e fazia. isso, com o tempo, me fez sentir paixão.

sem sutiã e sem vergonha, passamos a nos ver todos os dias. pequenas gotas de caos pingaram no meu piso vinílico. seu corpo, que eu vinha aprendendo a manipular tão bem pro meu próprio deleite, também tinha seus jeitos de escorregar. seu corpo pulsava em um lugar, pra onde eu ia com minha boca, mas então ele já pulsava em outro, que eu tentava agarrar com minha mão. nunca consegui abraçar sua vida. mas quase o fiz.

a Pequena chegou do trabalho pelas sete e meia da noite de um dia de outubro. me deu um “oi” entre os dentes. estranhei. ela não tirou os sapatos. pediu água, que eu dei. segurou o copo em silêncio. e me disse: “estou grávida”.