hoje meu coração disparou - PARTE III alínea a

[a trilha sonora deste trecho é "perfume do invisível"]

já não lembro direito. mas parece, ao que tudo indica, que Nestor parou de responder minhas mensagens. é, acho que foi isso. eu lembro de estar almoçando com uma amiga em um restaurante de Higienópolis, era um sábado. eu havia mandado mensagem pra ele pela manhã. já eram três da tarde. eu insisti: "tá tudo bem por ae?". ao que ele replicou dizendo que havia trabalhado, que estava cansado, que estava sem rumo, que estava nublado... o que se diz geralmente quando se quer fazer com que alguém acredite que "não é problema seu, é problema meu". fiquei puto e deletei a conversa com Nestor. faço dessas. com a Pequena, ih, fiz milhões de vezes. só guardei seu último texto, tal como Madame Curie guardou o pedaço do crânio do seu marido. o último texto que a Pequena me mandou ainda está aqui no meu whatsapp, e fede como o osso de um cadáver.

não me recordo com precisão. talvez seja efeito dos remédios psicotrópicos que tenho tomado. mas Nestor passou uma semana sem nem dizer um "oi sumido rs". ou talvez eu não consiga resgatar essas memórias porque já faz bastante tempo que isso aconteceu. ah, sim: ele me mandava mensagens sobre seu trabalho, dia sim, dia não. nunca perguntava como eu estava, se já tinha limpado a casa ou se já tinha batido punheta. segunda sim; terça não; quarta sim; quinta não; sexta sim; e eu mandei à merda. porra. respirei. peguei uma folha de papel, um lápis. fiz um roteiro do que dizer em um áudio curto. porque sou desses que manda áudio de três, quatro, até dezoito minutos. sou mesmo. escrevi:

  • que legal, teu trabalho está sendo reconhecido e será um sucesso;
  • entendo que não queira mais encontrar;
  • eu gosto muito de ti;
  • eu vou seguir minha vida;
  • vá para o mar e aproveite a água, que tu tanto adora.

bem cognitivo comportamental, pois a psicanálise eu deixei pra depois, com a Pequena. parece que seria rápido, mas foram um minuto e trinta e sete segundos. eu ainda queria estender mais, só pra protelar esse pequeno fim. aquela preta cueca esgarçada que eu nunca mais tiraria; a barba em que eu nunca mais roçaria. queria que ele ficasse grudado no celular com aquela orelha onde passei minha língua, só pra ouvir minha voz. alguém mais termina uma pegação de quatro meses com um áudio de um minuto e trinta e sete segundos baseado em um roteiro? sou desses. e mandei. ele respondeu "positivo e operante. desculpe de encher o saco. sucesso na vida".

eu desfaleci. não lembro, mas acho que quase desmaiei. pro Nestor, eu não merecia nem quinze segundos de resposta pela sua própria voz. resplandecia, por isso, o lugar que eu ocupava em sua vida. fui pra academia e caí na esteira enquanto ouvia o mais recente número do Foro de Teresina. tropecei no cadarço do tênis. virei chacota, saí de lá e fui pra um boteco qualquer. bebi a noite toda. e no outro diz amanheci na sarjeta da avenida paulista com a rua augusta, aos pés do banco safra, nas condições já relatadas.

eu havia me tornado invisível. eu não lembro direito, mas acho que foi isso.