hoje meu coração disparou PARTE V

[a trilha sonora deste trecho é "i get a kick out of you".]

cheguei na casa da Pequena com três malas, quase não conseguia carregá-las. contratei um carretinho pra levar até o apartamento na zona leste, zêéle, meus móveis. fui morar na zêéle, onde o berço da nossa criança estava montado. eu quis tanto um berço, um lugar de conforto e acolhimento; uma manjedoura onde nutrir nossa criança (a criança dela, em verdade); um ninho. a Pequena desprezava ninhos, assim como raízes. ela estava mais pra cardume do que pra matilha. navegava em águas tristes por aqueles dias, eu não entendia o porquê. houve uma manifestação feminista no vão do MASP na tarde mais fria do ano. ela tremia, e eu a abracei. e perguntei a razão pela qual ela não sorria. ela disse que estava cansada, talvez por causa da gravidez. a vida que ela carregava na barriga estava pesada demais pra um corpinho que mal sustentava os dreads do cabelo. mas a Pequena seguia sambando, como numa apresentação de teatro em que o show não poderia parar. o cansaço da Pequena era de outra ordem já ali, e eu não percebi. como sempre, a Pequena me escapava, de mim desviava, onde eu estava quase entendendo o que nela se passava. voltávamos pra zêéle de metrô, a Pequena calada desde a estação Marechal Deodoro. quando paramos na estação Anhangabaú, ela disse: "posso te pedir uma coisa? não precisa lavar a louça todos os dias. nem dobrar a roupa pra guardar no armário. não quero que a minha criança seja toda certinha e sem graça". do Anhangabaú até o Tatuapé quem permaneceu calado fui eu.

esse foi o primeiro momento em que um par de pensamentos me ocorreram. um: a Pequena estava cansada de mim. dois: teria sido melhor permanecer viado.

passei a desconectar da Pequena a partir da estação Anhangabaú. e segui desconectando, a cada dez minutos mais, até nos separarmos. se fosse uma imagem no espaço, isso daria pra muito além de Itaquera. mas a nossa criança estava dentro do seu corpo, e eu continuei orbitando, perto. o movimento de desconectar da mãe e ainda estar com a criança criou uma bifurcação que me rasgou ao meio. a Pequena desejava a criança, a sua criança, e não a mim. tudo bem. era uma forma de reparação histórica, pois meus antepassados usaram o corpo de mulheres pretas por séculos, indesejando as crianças que vinham desse encontro. eu sofria, mas entendia que era melhor assim do que ao contrário: que a Pequena desejasse a mim, e não a criança. pois uma mãe que não deseja sua criança confisca a possibilidade da criança se inserir no mundo, na vida. então aceitei a triangulação. a mãe e o pai desejavam a criança; a mãe não desejava o pai. o pai estava sozinho e sustentaria essa solidão em nome da vida da criança.

a quem eu e Nestor desejaríamos em uma triangulação? passei a pensar em formas de relação aberta, não monogâmica, entre homens. fantasiava com surubas gays enquanto escolhia fraldas RN e pomadas pra assaduras. não ficava de pau duro. porque não se tratava de gozar com e pelos outros. eu queria ter gozado pelo Nestor.

a Pequena já não queria trepar fazia semanas, e estava cada dia mais cansada e triste, calada. eu sustentava cada segundo do seu cansaço, em nome da criança que eu e ela desejávamos. porque a criança nunca teve nada a ver com gozo, com buceta molhada ou com pau duro. a criança tinha a ver com um projeto de vida em parceria, que eu sabia estar em demolição. mas quando uma parede parecia desabar, um teto parecia rachar ou uma viga parecia trincar, eu corria para segurar tudo. porque a criança precisava de uma casa onde ter seu berço. e teve uma manhã de segunda, quando chovia, em que a Pequena desmaiou em casa. disse que sentia náuseas. eu a levei ao pronto-socorro e chamei a médica que a acompanhava no pré-natal. a Pequena foi atendida, levou soro na veia, e uns outros medicamentos coloridos porque, ao que parecia, ela estava anêmica. samba demais, ferro de menos. quando a médica chegou, questionou a Pequena sobre o porquê de ter interrompido as consultas periódicas. a médica estava soturna. foi quando eu soube que havia mais de seis semanas que a Pequena não fazia o acompanhamento. na maca de um quarto coletivo da enfermaria, ela virou o olhar para a janela e chorou. a Pequena estava indesejante. temi pela nossa criança.

algumas horas depois vieram os resultados dos inúmeros exames. a criança estava morta dentro da Pequena. má formação fetal, ou algo assim, que misturava a maldade com a gestação e com um feto espremido dentro de uma barriga, que já não era mais ninho. não seria possível fazer o procedimento de retirada naquele momento, mas dias depois por meio de um parto induzido. nossa criança estava grande demais, ocupando espaço demais, abrindo o buraco da morte fundo demais. para tirar um corpo morto de dentro de um corpo vivo seria preciso todo o cuidado, pois a morte se alastra. e se alastrou. a Pequena e eu tivemos que aguentar conviver com o cadáver da nossa criança por algumas horas, as piores das nossas vidas, até que o parto da nossa criança natimorta fosse realizado. quando chegamos no nosso apartamento na zêéle, a Pequena se trancou no quarto. eu não ouvia sequer seus soluços quando bati na porta e pedi pra chorarmos juntos. ela não respondeu. eu sentei no chão, ao lado do berço que eu tinha montado. e, de novo, senti saudade de Nestor.