hoje meu coração disparou PARTE FINAL

[a trilha sonora deste trecho é "menina, amanhã de manhã".] 

não me vinguei, em fim. não sou vingativo. não fui feliz, como eu havia previsto e desejado.

não houve velório. só houve a convalescença da Pequena. alguns amigos fizeram uma cerimônia ao pôr-de-sol de despedida pra a criança. nenhum dos parentes do Rio vieram prestar seus pêsames. eu tentava apoiá-la com minha companhia, mas ela rosnava cada vez mais alto. ouvi de um conhecido que toda a situação só poderia ter sido castigo das deusas gays. percebi que meu namoro com a Pequena sempre fora objeto de piada. inclusive pra ela própria. e agora a piada tinha ficado sem graça. eu ouvia até as paredes rirem de mim, como pai. o cheiro da marginal tietê era o aroma do deboche de mim, como namorado: podre, e a metade de são paulo ainda cagando ali. suportei dividir o apartamento na zêéle até o dia em que eu ouvi a Pequena levantar de manhã cedo e ligar a caixinha de som JBL no spotify. até então, eu dormi as noites em um amontoado de colchas e edredons arrumado onde antes eu havia montado o berço da nossa criança. a Pequena dormia na cama de casal, um casal que nunca existiu, no quarto ao lado. não nos falávamos no cotidiano. no dia em que ouvi a playlist de samba às seis e meia, pela primeira vez em meses, eu refiz minhas três malas. ela voltara a desejar. ela quis me dizer algo quando me encontrou na sala, mas eu a impedi. "estou indo embora. pode ficar com os meus móveis." ela arregalou os olhos, mais de raiva do que de surpresa. vi nas rugas dela a contrariedade de não ter podido me convidar a deixar o apartamento. diferentemente de quando eu cheguei, minhas três malas estavam mais leves.

chovia naquela manhã. um mês se passou desde que eu fui embora do apartamento da Pequena, só fez sol. quero interpretar essas condições climáticas como um sinal. foi necessário, tanto pra mim quanto pra Pequena, ser livramento um pro outro. o sol é livramento, é claridade que ilumina. havia morte no meu sêmen?, morte no útero dela?, morte nos nossos corpos que não poderiam ter se encontrado para desejar vida?, o sol está dizendo que sim. porque está tudo aí exposto: a morte de uma criança que não mereceu velório, nem luto. está tudo aí exposto e a claridade mostra: não seja pai; sua vida não fertiliza outra, não nutre outra. a última vida da linhagem carregando três malas leves do tatuapé até santa cecília, onde haverá de encontrar um lugar pro seu desespero, refazer um ninho onde nada vibra, nem o assombro de perder o que tinha de mais precioso. uma criança que nunca fora sua.

e Nestor... é uma borboleta escura que cruzou meu caminho, saindo da minha cabeça. nunca o esqueci, nem quando sentia pela Pequena tudo de mais grudendo que existiu, como a lealdade de um pastor alemão. eu fui um cão pra Pequena, acompanhando-a, às vezes defendendo seu corpo. mas não senti por ela o mesmo que senti por Nestor. não, isso não foi traição. nem mentira. não escondi o que tinha acontecido entre mim e ele. porque ainda quero poder me apaixonar por outro homem como eu me apaixonei por Nestor. pelas pequenininhas coisinhas da convivência: a cueca esgarçada; o sol poente brilhando entre os fios do cabelo dele; o cheiro de chuva quente no asfalto [o hálito da cidade que eu mais adoro] que entrava pela janela onde ele se escorava, seminu. até hoje encontro os pentelhos de Nestor na minha barba - ou assim fantasio com seu rastro em mim. até hoje rio das suas piadas sobre as senhorinhas quatrocentonas, bolsonaristas de higienópolis. algumas pessoas encontram a chave de quartos na nossa memória, se acomodam lá com poucos de seus pertences, e se domiciliam. às vezes abrimos as portas desses quartos e olhamos a míngua na qual se transformaram - mas elas estão lá e ainda falam, ainda gritam. Nestor me habita nessa condição minguante, com uma ou duas malas pequenas onde cabem sua cueca esgarçada, seus cabelos desalinhados, sua barba e seu humor. e eu talvez habite um quarto, uma varanda ou uma gaveta da memória da Pequena. ela nunca foi o tipo de pessoa que revira gavetas. sempre que o fazia encontrava algo que julgava perdido, já absolutamente esquecido, e se dava conta de que ela própria tinha criado uma narrativa pra a perda daquele objeto qualquer, que era uma mentira. ou melhor, uma fantasia - a Pequena fantasiava muito. fantasiou a nossa criança. e eu acreditei na sua fantasia, naquilo que ela dizia que sentia por mim e na relação que ela queria ter comigo. não foi traição, nem se trata de mentira. eu estava em surto, atravessado por uma psicose de paternidade. um pai psicótico é risco de morte-e-vida pra uma criança. ainda bem que a nossa criança morreu antes de vir à luz. porque a luz expõe tudo. e a luz a qual a criança seria dada exporia o pai psicótico que a fertilizara. a colher de sopa de loucura que há no meu sêmen iria reluzir, como o sol por entre os cabelos de Nestor.

[a trilha sonora deste microtrecho é "adoração"]

e Nestor na Pequena... ou sobre quem eu quis que ela fosse, esse homem que eu procurei nela, eu me desculpo. eu peço desculpas por gritar truco a cada vez que ela dizia apenas "sim". fiz tudo por ti, porra, e tu me esquece, me substitui nessa criança nascida morta, o que mais tu quer de mim?, cara rasgada ou dente caído, eu te amo, ou lábio destroçado?, eu todo pra ti, teu corpo todo me serpenteando, e a flecha do ciúme sempre me acompanhando porque pra ti sou nu, sou translúcido, me pega e me atravessa, me toca, o elevador tá gritando que alguém vai descer no meu andar, eu lembro de não pegar elevador e seguir num corredor longo, amarelo, e eu dei de cara com um rapaz por quem eu poderia ter vivido a vida inteira em sorrisos e pouco dinheiro, às custas de qualquer auxílio estatal, bolsa-meu-cu-que-seja-eu-te-amo, era diego o nome dele, eu jamais quis ter outra filha, nenhuma filha, já tive um no Chile e chama-se Estebán, e minha dor mais imensa é ser sozinho, sem nenhum toque grosso, nada na pele branca, nem um arranhão teu, essa pele branquela e ridícula que não tem história pra contar que não seja de escravidão, eu te grito pra tu voltar e sei que tu não volta nem que eu pague nem que eu lamba a linha vermelha inteira, eu te lambo, eu te grito, e não tem nada na vida que faça teu samba descompassar, eu prometo que cuido da tua buceta linda, e te como, eu te como, viado que sou, tua buceta linda eu como porque eu sou tu aqui atrás, no mais lindo do teu bacanal, seu viado filho da puta, não enxergas que sou eu sustentando toda tua malemolência e acidez, porque não acho que tua putaria te garanta um lugar muito - como gato, como leão, ou como uma coisa felina que pousa as patas arredondadas na terra e marca -, tu é rio, eu sou margem, não vês?, eu sou tu ao contrário, e quando eu perco tudo [eu perdi tudo por ele, meu dinheiro e meu respeito, e é aí que ele me acha comum] tu escolhe viver a vida com outro, O OUTRO, por quem nada haverá de surgir, nada de belo haverá de iluminar a linha da tua pele quando tu não quiser acordar às seis da manhã pra trabalhar, e eu estava lá pra te fazer café, mas vejo e sinto que não é isso, "não é sobre isso" como dizem teus amigos hipsters, é sobre o quê?, seu filho da puta previsível, eu sei de todo teu desejo como quem assiste a um filme VHS, rebobino teu gozo, e vejo que tudo o que experimentei é só e tão somente essa farsa, fascinante, que é tu, e venha deitar na nossa cama, que falta faz cada pentelho teu na nossa cama, cada suspiro e ronco; volta; não posso lidar com o mínimo que tu me dá; mas que mínimo, a final, que não seja aquilo que pensamos de nós próprios; minha voz e minha pele, e meu sorriso, são todos teus pra tu trocar pelo sorriso desse OUTRO que tu pensa ser melhor que eu, e eu que não penso ser melhor que numa vez que usamos emedê, eu era todo, tu nem tanto, havia uma parte de ti que achava outras saídas de mim, e eu te seguia, te perseguia, e lá ia tu saindo de toda intimidade que eu havia criado, não era cafona nem mofada, tinha cheiro de benjoim, e tu disse que eu "procurava macho" quando era tu, apenas, que fazia todo o sentido naquelas paredes que hoje eu preciso pintar, seu filho da puta, eu tenho que pintar as paredes onde eu fermentei teu corpo e tua voz, tá tudo ali, seu filho da puta, não tem demão de tinta que dê conta do que eu senti por ti, seu filho da puta, meu cu era todo teu e minha pele rasgada, velha, caída, minhas olheiras, eu tentei te acompanhar nas drogas mas [como cão] eu uivei, e acabei num cubículo em perdizes, cep zero um dois três três, e o caralho, era tu, seu puto, que viveria comigo pra todo sempre, mentiroso, desonesto, era sobre você estar naquela casa da qual não consigo mais desapegar, e pago rios de dinheiro pra tentar desfazer, e se agora estou desempregado é por tua culpa, inteiríssima culpa, mas como sei que tu não sente culpa eu só te desejo solidão. estar consigo. porque deve ser como um dildo pequeno no seu cu quando tu pede pra ser humilhado. uma camada de nada. o pior dos fracassos. 

[a trilha sonora deste microtrecho é "fina estampa".]

eu sempre me imaginei nesta situação exercendo alguma dignidade. agora, pelo retrovisor dos dias, sinto que tive pouco - e o pouco de dignidade que eu tive serviu para que todos em minha volta me achassem i) grosseiro ii) insensível iii) doente. disseram que eu "esqueci da Pequena muito rápido"; que eu "excluí Nestor da minha vida abruptamente"; que eu "mudei e des-mudei como um homem cis branco católico pequeno burguês safado e arrogante, que monta e desmonta casas como se de cartas fossem". não gostaria que pensassem isso, pois é menos de um quinto do que se passou em mim. mais que trepar [também trepar!], eu gosto de contar segredos sobre mim. mais que andar na rua de mãos dadas [e andar na rua de mãos de dadas é pra mim obrigatório!], eu gosto de compartilhar uma noite de sono. eu preparo refeições e as ofereço. eu planejo e executo viagens. se necessário for, eu até canto, até declamo versos da Florbela Espanca. eu monto berços. conduzi com dignidade meus sentimentos por Nestor e por Pequena. aquele escolheu outro; aquela não quis minha criança. isso não é pouco. repito: atravessei meus sentimentos por Nestor e por Pequena com dignidade, o que não significa que eu habitei uma casca, nem que dissociei. tenho cá minhas doenças; nenhuma delas me impede de me apaixonar. e o fiz, duas vezes, na sequência. tive essa habilidade. e fui engenhoso a ponto de me acreditar pai. não segurei minha criança no colo, mas fui seu pai; pai de uma criança que cuidei e nutri. tenho cá minhas misérias neuróticas; nenhuma delas me impediu de me conduzir com dignidade pelos labirintos de Nestor e pelos dreads da Pequena. houve felicidades banais. se me calei, se sumi, se arrumei três malas leves e saí com muita rapidez, foi porque estava a ponto de perder a dignidade. o que vocês veem é uma fina estampa. mesmo quando eu choro, e há algumas noites eu agachei no piso do box chorando no banho, de soluçar, até nesses momentos eu o faço com sobriedade, com motivo. eu perdi minha criança, uma criança cujo sorriso eu desejei. e mesmo tendo enterrado uma criança natimorta, eu ainda me sinto capaz de me apaixonar, de desejar vida pra outra criança, de montar berços, e de arrumar malas leves pra ir embora se for preciso. se amar não for encontrar a morte no corpo do outro, doer com isso e continuar apostando na vida encontrada no outro [apesar da sua porção de morte], nenhuma forma de amor vale o canto. se amar não for isso, nenhuma forma de amor vale a viagem da barra funda à itaquera. se amar não for isso, nenhuma forma de amor sobrevive a são paulo.

[a trilha sonora deste microtrecho é "noite de são joão"]

nas primeiras noites depois do último minuto que passei com Nestor, depois do último minuto que passei com a Pequena, eu só conseguia dormir com remédios. desses fortes, tarja preta, que consegui porque desagreguei das duas vezes e fui atendido em clínicas por médicos que não pouparam receitas controladas. não conseguia ficar em casa sozinho. não conseguia lidar com o escuro, nem com o silêncio. das duas vezes. por isso, eu quase não dormia. e fui criando bolsas de retenção de líquido embaixo dos olhos. e não conseguia comer, o que me fez emagrecer. das duas vezes. meu rosto desmanchou: bochechas caídas num andar abaixo das olheiras inchadas. eu parecia um bulldog em luto. das duas vezes. bebia demais, muita cerveja, porque já que não conseguia ficar em casa [quando eu desesperava era durante os pores-de-sol, quando o lusco-fusco entre dia e noite sinalizava "fim" em toda a cidade], eu apelava pela companhia de amigos em botecos, quaisquer botecos, desses com mesas e cadeiras de praia na calçada. bebi demais das duas vezes. e, com isso, gastava meu salário todo antes do dia 20 de cada mês. quando acordava, tomava café passado no coador e fumava um cigarro bolado [essa prática foi mais intensa nas centenas de milhares de minutos depois do último que passei com a Pequena, porque me lembrava dela]. isso me deu azia. das duas vezes. virei um monstro bêbado. todos esses sintomas de conversão, em verdade punições, passaram depois de meses. quando eu entendi que Nestor e Pequena eram, assim como eu pra eles, substituíveis. sem rancor, sem ressentimento. das duas vezes. passei duas oitavas acima nas minhas canções de amor. e meu corpo também se regenerou. não sinto raiva nem de um, nem de outra. senti pena de mim, às vezes, porque eu era atravessado, no meu próprio corpo, pelo metal da decepção. nem um, nem outra foram decepcionantes. mas eu tinha lá minhas expectativas em relação a ele e à ela, que vinham em tsunamis de frias lâminas. era meu corpo soterrado. não foi só tempo que exerceu cura. foi, também, a humildade de suportar a contradição da decisão, a escolha pelo erro. das duas vezes. me reconhecer humano no erro e na contradição foi o que me curou. pra essa cura não há tempo; há postura. aguentar calado a rocha da imperfeição sobre os ombros. ouvir o grito de quem existe, mas que por sua vez não sabe que existimos, e não tentar se fazer conhecido. conviver com a ignorância do outro sobre nós, e tomar chá com nossos demônios [chá de picão].