hoje meu coração disparou PARTE VI

[a trilha sonora deste trecho é "não é céu".]

chorei por horas e dormi ao lado do berço. acordei de madrugada. a porta do quarto permanecia fechada, e eu não ouvia nenhum som vindo de lá. talvez a Pequena tivesse pegado no sono. peguei a caixa de ferramentas que tinha comprado pra a montagem do móvel-ninho. heranças materiais pra nossa criança - as ferramentas, o ninho. compreendi que era necessária a desmontagem naquele instante, e nos próximos, até que a porta do quarto se abrisse e voltássemos pra o hospital. um parto induzido; um aborto espontâneo. dar à luz uma criança morta. um viado gaúcho pai da criança de uma sambista carioca. estava tudo ao contrário, tudo contradizendo o que a vida poderia ser, deveria ser. um quase-pai de uma quase-criança que indesejou vir ao mundo.

tirei os parafusos e desencaixei as peças de mdf. empilhei uma a uma, da maior pra menor. a cabeceira do berço deixei de pé, encostada na parede. facilitaria sua remoção. eu não suportaria fazer isso. chamaria amigos pra me ajudar. ou contrataria o mesmo carreto que levou minhas poucas coisas pra zêéle, quando fui morar com a Pequena. ou jogaria pela janela ainda à noite. ou poria fogo em tudo assim que a Pequena fosse pro hospital. ou serraria tudo em pedaços, em retângulos, pra fazer um dominó ou um quebra-cabeças, um xadrez que comporia o rosto imaginado da nossa criança. ou construiria um caixãozinho onde nossa criança seria velada. aquele já estava sendo parte do meu velório enquanto pai indesejado.

abri as portas do armário e as gavetas da cômoda. uma a uma, tirei de lá as roupas pensadas para vestirem a criança. eu as desdobrava, abria os panos com as mãos e sentia o tecido, roçando minha pele em cada peça que jamais cobririam o corpo da nossa criança, já morta dentro da mãe. voltava a dobrá-las para colocá-las dentro de uma mala. a Pequena quereria doar tudo para uma nova mãe, para uma criança viva. eu rasgaria tudo, cortaria partes como mangas e punhos, costuraria as peças desmontadas formando um grande tecido bricolado, revestido com as fraldas RN, preenchido com os montes de algodão, e jogaria nele todo o shampoo e essência "com cheiro de bebê" que eu havia comprado pra nossa criança. e enrolaria o corpo da nossa criança nesse grande patchwork sombrio e perfumado. e poria fogo em tudo. um ritual definitivo de cremação para uma criança quase-viva, realizado por um pai indesejado.