No blógui com a Madonna - parte III

Cena III – A bicha-mirim junta 6 meses de mesada para conseguir comprar um compact disc. Em 1993, ter um cd player era a coisa mais ultra-mega-pós-moderna de que se tinha notícia. E o primeiro que ela compra é Erotica, nada mais nada menos que Erotica. Detalhe: em sua casa, ela ainda não tinha cd player. A bicha-mirim, persuasiva, consegue fazer com que seu pai prometa que dentro de no máximo quatro semanas tenha uma máquina dessas em casa... Mas nossa heróica bicha não sabia que tinha pela frente uma nota 4,6 em uma prova de matemática da quarta série primária. A professora manda que os pais assinem a prova, pra depois ser entregue novamente na escola. A assinatura nunca retornou. Quando descobre, o pai suspende a aquisição do aparelho. A bicha-mirim entra em colapso nervoso.

Com que prazer, meu deus, aquele cd chegou às minhas mãos. E com que ansiedade eu fiquei à espera do cd player para poder ouvir as músicas que estavam ali. Passando um dia pelo quiosque da Praça da República, vi uma revista ‘Showbizz’ edição especial Madonna no Brasil. Ali estavam fotografias do show de estréia em Londres, ainda em setembro de 1993, e todo o set list da apresentação. Dei-me por conta de que boa parte das músicas estava em Erotica, e que algumas músicas estavam também em Like a prayer. De True Blue, apenas La isla bonita. O desespero foi tal que em menos de 2 meses eu dei um jeito de conseguir todos – T-O-D-O-S – os álbuns anteriores a Erotica para poder compor, pra mim mesmo, o set list do show. Isso, é claro, me obrigou a fazer negociatas pouco honrosas com meu pai, e também vendas de gibis duvidosos para meus colegas de aula. Tudo era pretexto para juntar dinheiro e comprar os álbuns, em cd, que naquela época custavam muito caro (talvez não tão mais caro que hoje, mas enfim, pelo menos hoje temos a internet e a pirataria, salve salve!). E ainda havia outra batalha a ser travada: conseguir permissão dos meus pais para ir até o Rio de Janeiro, no dia 6 de novembro de 1993, no estádio do Maracanã, para vê-la ao vivo. Resultado: até o início de novembro daquele ano, todos os cd’s estavam em meu poder, e eu permanecia trancafiado no escaldante interior gaúcho. Obviamente não obtive permissão para ver Madonna, sob a legação – mais que justa – de que o Rio era uma cidade muito perigosa para uma criança de 10 anos, tendo em vista que recém havia acontecido o primeiro arrastão na praia de Copacabana. Alguns soluços e lágrimas desperdiçados nessa tentativa infrutífera não me impediram de transformar quaisquer arames, bolas de golfe e até mesmo cabides, nos icônicos microfones de cabeça, que saíam da parte superior das orelhas e se insularizavam até alcançar a boca da cantora. Sim: já que eu não poderia vê-la, eu passei a imitá-la, a fazer meu próprio Girlie Show doméstico, exercitando coreografias imaginárias que eu pensava estarem de acordo com os acordes das músicas que eu ouvia, mas sem saber se eram, de fato, as que Madonna desempenhava no palco. Era um exercício de imaginação: ouvir Express Yourself e dali extrair um movimento corporal, uma contração muscular, um passo que coordenasse braços com pernas como se eu estivesse num palco. A mais difícil, a mais custosa, a mais árida música era Justify my Love. Totalmente subjetivado por aquilo que a revista Veja chamava de “o furacão Madonna”, se eu não poderia vê-la ao vivo eu criava sua imagem em movimento em mim mesmo, no meu próprio corpo, na minha sala. Nenhum hermafroditismo: apenas imaginação e heterotopia nas experimentações de mim.