Um mundo sobre rodas.

Uma arqueologia é isso: é eleger ou de repente ver o que nunca antes pôde ser eleito ou visto, escavar o que lhe sobrepõe, achar outras coisinhas em volta, relacionar essas coisinhas àquilo que foi eleito, verificar as conexões que podem ser estabelecidas entre elas, produzir sentido ao que se vê ou ao que foi escolhido. Não há ponto de origem, marco inicial, monumento de referência; nada sinaliza o local exato onde tudo começa. Já escrevi sobre isso antes, outros já escreveram de uma maneira melhor que essa minha. Não vou me deter explicando isoladamente a teoria na qual eu vivo minha vida – sim, toda vida tem uma teoria, uma filosofia, um pano de fundo conceitual.

Um dia um bom amigo me ensinou que não há sede sem água, nem fome sem pão. Nesse dia eu entendi que nada acontece a sós, mas sempre implicando outra coisa num outro nível, numa outra dimensão. Nada de sobrenatural, de extra humano. O que vivemos e sentimos é desse mundo mesmo, ao qual pertencemos, da nossa história de aqui e agora. Não vou cair na breguice de dizer que eu só sou eu porque há tu, tampouco vou afirmar que agora minha sede está saciada da tua água e tua fome, do meu pão. É possível dizê-lo, mas isso seria não escavar, não explorar, não cortar em lâminas a superfície disso que eu elegi ou disso que eu de repente vi: tu.

Tu: um mundo sobre rodas. Isso já dá um livro de contos, horas navegando no Google, semanas de análise lacaniana, anos de interpretação junguiana, já é o suficiente para meu deleite. Pensar num mundo sobre rodas não é só pensar num mundo em movimento, ou num mundo dinâmico, mutável, leviano. Teu mundo não é leviano. Um mundo sobre rodas também não é um mundo à deriva, sem rumo, nem um mundo que escapa ou que foge. Tu não és um fugitivo. Um mundo sobre rodas não é rápido nem veloz. Portanto, um mundo sobre rodas – o teu mundo sobre rodas, tu – não significa velocidade, leveza, nem covardia.

Meu mundo era cor de rosas. Isso já deu semanas de análise lacaniana, anos de interpretação junguiana. Meu mundo era cor de rosas, mas nunca foi sempre feliz – digamos que os momentos de felicidade estavam salpicados, como gotas, nas pétalas. Também não foi sempre cheiroso, perfumado; meu mundo cor de rosas não foi sempre macio e aveludado. Meu mundo cor de rosas nem sempre foi rosa: foi, em sua maioria, da cor de um amanhecer de inverno. Meu mundo cor de rosas soube aproveitar bem seus espinhos.

Eis que houve o dia, o momento, em que o chuveiro e o vapor, em que as toalhas e o suor serviram de pretexto para pôr lado a lado, totalmente nus, teu mundo sobre rodas e meu mundo cor de rosas. Não tomemos este como sendo nosso monumento: não levamos nossos corpos até lá calculadamente, mas sim fomos levados e arrastados para lá por forças sobre as quais em geral não pensamos. Havia um desejo lá no teu mundo e também um desejo aqui no meu; havia um pouquito de tristeza lá nas tuas rodas e um tanto de solidão nas minhas rosas; havia histórias de outros tempos que nos conduziram até lá (no teu mundo, histórias de lentidão, de pesar e de coragem, histórias de monotonia, de mentiras) [no meu mundo, histórias de morte e luto, de cegueira monocromática, histórias de asperezas e friezas, de fedores]. Não acho que foram nossos olhos, por primeiro, que se tocaram. Foram os joelhos: nos ajoelhamos. Se não há ponto de origem para nós dois (poderíamos ser nós três; na verdade éramos nós cinco lá no chuveiro e no vapor, e desses cinco subtraíram-se dois [nós dois], e desses dois multiplicaram-se tudo o que fizemos até agora), se não há esse ponto inicial, há pelo menos um ponto de engate, de enlace, de intersecção: os joelhos. “Como vocês se conheceram?”, nos perguntam. Respondamos: “Foi pelos joelhos”. E dos joelhos achamos outras coisinhas em volta, outras coisinhas no seu entorno, coisinhas que se avizinham dos joelhos, e fomos escavando essas relações todas entre nossos joelhos, achando rosas sobre rodas e rodas rosáceas, e quadrados, ângulos, verdes e laranjas e morangos, risadas, dias, entardeceres e noites. Coisinhas em volta, conexões entre nossos joelhos. Estamos construindo algo, é bem verdade, montando um rosto para este terceiro mundo, uma face a que se reconhecer e da qual se alegrar. Mas também estamos escavando um ao outro, como se ao fazer nossa arqueologia também estivéssemos fazendo o que queremos do nosso presente.