Gotas, goles e garrafas

É do veneno que se faz o antídoto?

Gotas de felicidade: os pés quentes sobrepostos ao fim das pernas entrelaçadas coextensivas aos corpos abraçados de lado, testa de um na nuca do outro. Manhã fria de outono dentro e fora do quarto. Primavera no interior e na superfície dos corpos. Surpresas de fim de dia – uma flor, um vinho chileno, um beijo cinematográfico. Uma esporrada na cara, é presente? Frases que colonizam o futuro – “quer casar comigo quando tu voltar?” – planos que colonizam o futuro – “eu não vou embora, eu volto, e quando eu voltar a gente pode viajar”. Um relógio anda mais rápido que outro, um é mais urgente que o outro. Um seca a louça que o outro lava, e eventualmente quebra uma taça; risadas soltas de um sobre o jeito desastrado do outro.

Goles de desgosto: que coisa estranha essa vontade de apagamento, vontade de assepsia que um tem do passado do outro. Desejo de fazer o passado deletar, fazer as histórias e as cenas passadas desaparecerem e, ao mesmo tempo, desejo de raspar o verniz do corpo do outro para transformá-lo em superfície lisa e virgem de inscrição somente – e tão somente – do presente que estamos vivendo. Ciúmes, flecha negra, raiva e desrazão. Se um é neurótico e se contamina com as realidades que ele próprio cria para justificar sua obsessão desmedida pela traição, o outro silencia sob a égide da suspeita constante de estar sendo vigiado pela catástrofe que um dia acometeu toda sua vontade de estabilidade. O monstro de um come o rabo do monstro do outro, e se preservam. Se um come o cu do outro, isso também não é vontade de ferir, de rasgar o corpo do outro?

Garrafas
(CONTINUA...)