Por alguns pedaços de carne

Ele chegou em casa, lavou as mãos. Enquanto seu companheiro, que estava bastante incomodado com a recente discussão, trancafiava-se sozinho no seu fantástico mundo secreto de lantejoulas e canutilhos, ele decidiu apurar a janta. Foi direto para a cozinha cortar em lâminas o pedaço de filé que comprara no dia anterior. Precisava de uma faca afiada, muito bem afiada, para deslizar a carne no sentido de suas fibras com um mínimo de esforço para não lacerar aquele caríssimo pedaço de ouro. O sabor do prato dependia de sua habilidade com o fio.
Não suportava suas vontades. Para lidar com elas, somente três atividades lhe aliviavam: lavar, limpar e organizar. Tomou o corte do pedaço de filé como se fosse tudo isso. Como se fosse um jeito de lavar seu sangue, de limpar a gordura de sua própria carne, como se organizasse em pequenas tiras suas próprias ansiedades.
Vontade de apagamento. De apagar o passado, o seu próprio e o do outro, de modo que tudo começasse ontem. Ou anteontem, ou semana passada, mas desde que tivesse o direito de começar sempre, indiscutivelmente sempre, amanhã ou mês que vem se fosse o caso e se fosse de seu desejo. A vontade de apagamento era um dos sentimentos mais perversos que estavam por detrás do nobre objetivo de “começar de novo”. A face mais cruel de todas é que sentia vontade de apagar o passado do outro e o seu próprio do modo com que lhe conviesse, da maneira que melhor se encaixasse nos seus anseios por pureza. Em suma, vontade de apagar, mas de apagar do seu jeito, na sua hora, e apagar as coisas que ele quisesse. E ia separando a gordura do filé, feliz em pô-la toda no lixo e logo depois fechar a tampa. Amarrava o saco plástico com força, cheio de resquícios que seriam jogados fora, escondia o lixo atrás dos armários da cozinha ou embaixo do tanque da área de serviço.
Vontade de transparência. Bate punheta? Por quem? Em quem? Quando e sob que circunstância? Quantas vezes e em que intensidade? Vontade de cortar em fatias finas o desejo e as fantasias do outro, vontade de escutar e ver tudo daquela mente. Vontade de atravessar o corpo do outro e descobrir-lhe o lugar da paixão, do sexo, da saudade, da dúvida. Vontade de luz nas sombras do outro, de velas nos seus breus, vontade de desvelo, vontade de panoptismo. Curiosamente, ele próprio era alguém que não punha fé em nenhuma verdade, em nenhuma certeza; entretanto o que lhe nutria as vísceras em querer saber de tudo que emergisse na consciência do outro era a sensação de controle em intuir e conhecer a essência do outro. O que será isso a que damos nome de “essência” senão a mais cristalina e absoluta verdade sobre qualquer coisa? Cortava as iscas de filé e não achava nenhuma verdade, nem nas superfícies e nem nas entranhas da carne (verdade sobre o novilho morto? Verdade sobre o pasto usado para alimentá-lo? Verdade sobre seu criador?).
“Se eu cortar o corpo do outro, vou saciar minha vontade de transparência? Posso apagar seu passado se eu separar sua jugular de seu pescoço? O sangue é transparente ou, em últimos casos, pode servir de borracha ou corretivo?”
Na dúvida, resolver tentar.