Cartas a uma jovem bicha - o diagnóstico do presente

“[...]asar e morar junto, entendes? Isso pra mim não é sequer da ordem do ‘susto’ ou da ‘repulsa’, é simplesmente da ordem do inaceitável. Perde-se espaço e tempo para ficar só – e ficar só, hoje em dia, é um exercício cada vez mais recomendável. Entendo o princípio da comunhão, da não-separação, da divisão das tarefas e dos afetos, mas meu argumento vai no sentido de dizer que não é necessário morar junto, sob o mesmo teto, para que a cumplicidade, honestidade, paixão, tesão, saudade, admiração e respeito se construam e se consolidem. Ele, por sua vez, argumenta que não é só porque se mora junto, sob o mesmo teto, que a individualidade, que a circunspecção, que a tranquilidade, que a privacidade vão-se embora. Nós dois temos razão, mas não estou disposto a abrir mão do espaço que meu corpo e que meu ego ocupam para ir brigar lá noutra cama, com outro corpo e com outro ego, por um pedaço das cobertas para me aquecer numa noite fria. Acordo sorrindo todo o dia. Até mesmo quando brigamos ou quando nos magoamos, nos entendemos pela madrugada, lá na calada da noite quando o sol já faz a volta para subir de novo, e quando sentamos à mesa para tomar café já estamos em paz com as arestas que um tem sobre o outro. Ficamos em silêncio um bom tempo, mas também tagarelamos muito sobre coisas que vagueiam entre nós. Observo a pele dele, que reveste esse corpo que agora conheço e exploro, e beijo e lambo: ela tem vincos e abismos, corta-se com facilidade e sangra – e faço curativos, com o maior cuidado e preocupação –, ela tem dobras, superfícies irregulares. Vejo fotos de 10, 20 anos atrás, e lá onde agora vejo essas ondas epidérmicas, antes havia um lago de águas lisas. Uma tez lisa e esticada pelo vigor da idade. Mas o que realmente me interessa não é o liso nem o esticado da pele, porque não me interessam águas lisas e rasas. Prefiro, milhões de vezes, as ondulações rugosas da pele dele que agora sinto e que agora vejo: sinto e vejo beleza nos vincos próximos às orelhas e por aqui, debaixo do pescoço. Às vezes me deito por ali, assento minha cabeça nessas rugas e lhe beijo as marolas que se formam aqui no canto externo dos olhos... É tão bonito e tão confortante. Será que ele não percebe, meu deus, que já moro no seu corpo? Eu já estou lá de todo modo, naquela casa e naquele banheiro. Passo a mão nos meus cabelos e sempre vêm alguns fios de cabelo, que julgo belos por serem ondulados – também tenho minhas ondulações. Há dezenas desses meus fios boiando nas águas densas daquela cama. Já não estamos mergulhados, cada qual à sua maneira, no caldo grosso um do outro? Já não estamos construindo, cada qual no espaço-tempo um do outro, uma terceira casa além das duas que já temos onde possamos morar e nos refugiar?[...]”