(Sem título)

Vez em quando eu aborto. Sai como um vômito de mim qualquer coisa que eu vinha gestando, criando, preservando, cultivando. Nem sempre sai pro bem, nem sempre avisa que vai sair: por isso chamo de ‘meu aborto’. Vez em quando, também, eu soroconverto. Sorologicamente positivo para o HIV, para hepatite, para sífilis, para meningite, para paraplegia e tetraplegia (uma certa cepa de vírus me rouba os movimentos), fico de cama um tempo remoendo minha incapacidade, reproduzindo vírus, eu mesmo virulento e pesado. Vez em quando eu deixo de acreditar, me canso. Ou sou surpreendido por um futuro vindouro que me arranca ‘as rédeas da minha vida’. Que tolice, não é mesmo?, achar que temos o poder de decidir sobre o que somos e sobre o que nos tornaremos, achar que nosso corpo nos pertence e que nossos sentimentos são sinceros. Que tolice, nunca pensaste nisso?, achar que de uma vez por todas seria possível um beijo seguido de um abraço sem que algum preço tivesse de ser pago para que consecutivas noites fossem costuradas com essa linha e com essa agulha. Somos desde sempre um tanto paraplégicos, outro tanto tetraplégicos. Noutro momento já me conformo com o aborto, com minha condição sorológica, com minha tolice. E conformar-se não seria também um jeito de ir resistindo sem ser percebido?