Continuação da entrevista IV

- Mas o autor não é capaz de criar? Nós não somos capazes de originalidades?

- E quem de mim ou quem de nós disse em algum momento que somente autores criam? Salvemo-nos da obrigação de criar, salvemo-nos da ditadura da originalidade, por favor. Mais: criação nunca foi sinônimo de originalidade. Criar algo não significa que esse algo criado é absolutamente novo, inédito, inaugural. Pense: o que em ti é inédito? O que te faz pensar que tu és a autora da tua existência? Passamos boa parte das nossas vidas respondendo às demandas que nos são oferecidas – veja, usei ou usamos a expressão ‘oferecidas’ e não ‘impostas’, como gostariam alguns intelectuais. Se a sociedade pede, respondemos afirmativamente buscando novos corpos, novas profissões, novas especializações, novas terapias pro ego, novos silicones pras nossas caídas e despeitadas subjetividades (risos). Então, quando dizemos ‘a sociedade pede’, ‘a sociedade demanda’, ‘a sociedade impõe’, quando dizemos estas coisas todas estamos também nos colocando no lugar de quem pede, demanda e impõe. Todos nós estamos no mesmo barco, cujo nome é ‘sociedade’. Há mesmo algo de novo pairando no ar? Há de fato algum novo espectro rondando a Europa? Há realmente algo de podre no reino da Dinamarca? Nem Marx nem Shakespeare foram autores absolutamente originais. Apenas equalizaram a polifonia de suas épocas, meteram em megafones vozes que antes eram murmúrios. Eles pinçaram burburinhos sem nome, capturaram os sussurros impotentes e lhes deram filiação, endossaram suas verdades através do ajuste que fizeram com as regras do então jogo, compactuaram com as leis do enunciável de suas épocas e vociferaram ideias que não são necessariamente só suas, mas que são toda a expressão de um tempo, de uma geração. Marx e Shakespeare hipertrofiaram palavras magras e, de brinde, assinaram-nas com seus nomes, documentos nominais com suas assinaturas, isso que hoje chamamos com muita pompa e circunstância de ‘suas obras’, converteram-se em ‘autores’. Aquilo que cintila e que ecoa, tudo aquilo de visível e de dizível que cada época tem, isso tudo não é da ordem da originalidade: isso tudo é da ordem do assujeitamento, pois aqueles que se assujeitam às regras do poder dizer e do poder fazer ver é que, de fato, nos aparecem como autores – e na maioria das vezes ainda ganham o glorioso adjetivo de ‘originais’. Falam para nós - e quase sempre falam de nós, falam coisas que supostamente deveríamos saber sobre nós - de modo claro e nos fazem ver coisas que antes julgávamos inexistentes. Oh, exclamamos nós, que pessoa original! Interessantes mesmo são aqueles que gritam em vez de nos falar, são aquelas luzes que nos cegam em vez de nos iluminar. Interessantes são aqueles que derivam, que incomodam, os inclassificáveis. Van Gogh não vendeu um quadro sequer até morrer porque suas pinturas eram desprezadas. Mas o bárbaro de Van Gogh não é sua assinatura; a originalidade de Van Gogh, pra usar uma expressão que talvez te faça entender melhor meu argumento, estava no fato de ser solenemente ignorado pelas regras de sua época. Sua técnica de pintura e seus temas eram profundamente desprezados; eis seu magnetismo.

- Ótimo, muito bom. Tu te considera ou vocês se consideram autores, ou autores originais?

- Não. Eu não me considero, nem nós. Não assinamos nada, não doamos nossas impressões digitais, não temos caligrafia, nem rosto para uma foto três por quatro. Não há nada em mim, nem nada em nós, que me faça ou que nos faça arcar com a responsabilidade disso que está sendo falado aqui.

- Será algum medo da responsabilidade de articular estas palavras e ideias, além de publicá-las?

- (silêncio)...