Continuação da entrevista V - "De medo estou e estamos borbulhantes"

- Será algum medo da responsabilidade de articular estas palavras e ideias, além de publicá-las?

- (silêncio)... Medo e responsabilidade, que delícia de temas! O que seria do medo se não houvesse a responsabilidade, não é mesmo? Acho ou achamos que, de fato, uma das questões principais dessa problemática acerca do autor ou dos autores destes textos todos aqui publicados gira em torno exatamente do princípio de responsabilidade. Atribuir palavras, e palavras são atributos das ideias, atribuir palavras e ideias a um autor específico entre tantos que por aí criam outras coisas além de textos – há quem crie cores nunca antes vistas, há quem crie novas formas de extrair esperma dos testículos de um homem, enfim, nenhuma dessas pessoas é considerada um autor, com letras maiúsculas – essa atribuição só se faz necessária quando tais palavras e tais ideias rompem com algo previamente dado. Aí se torna importante atribuir um texto a um autor. Porque daí se produz a responsabilidade, e o princípio de responsabilidade tem a ver com o rompimento de algo que não se supunha passível de ser rompido. Não é o fato de ser “um autor original”, mas de ser alguém capaz de arcar com essa responsabilidade, de responder afirmativamente no meio de uma multidão e quando questionado: “sim, fui eu quem escreveu” ou “sim, fui eu quem pensou”. Eu não faço ou nós não fazemos nada disso: não rompo nem rompemos com coisa alguma. Mas isso não basta para justificar esse mistério acerca do autor ou dos autores dos textos aqui publicados. O princípio de responsabilidade só existe com o objetivo de recortar isso que chamamos de autor de uma massa amorfa e insípida para, então, expô-lo à visibilidade. O princípio de responsabilidade é também um regime de visibilidade no qual inscrevemos o autor ou os autores: para controlá-los, para saber deles, para conhecê-los, explorar-lhes os meandros da mente, as maneiras com que associam ideias, os modos com que sua subjetividade foi construída ao longo de sua história de vida, as razões que o lveram a morrer da forma com que morreu, se morreu. E em nome desse regime de visibilidade reviramos a biografia daqueles que elegemos como sendo autores em busca das esquinas que essas pessoas precisaram dobrar, em busca dos traumas de infância pelos quais passaram, na tentativa de reconstruir – seja através de filmes, de músicas, de fotografias ou mesmo através de outros textos – os momentos seminais que fizeram do autor isto que conhecemos, e não uma outra coisa. Queremos beber desta vida e apertar a mão daqueles que foram seus mestres. Entendes a crueldade? Eu não quero nem nós queremos dar o rosto à vista, ou dar a assinatura à pena, sequer as impressões digitais à tinta, porque não quero nem queremos ver nossas vidas revisadas por qualquer outro que seja. Porque da minha vida só sei eu, e da nossa história só escrevemos nós. E se outros as quiserem contar, que esteja claro que estas vidas recontadas são biografias absolutamente irrelevantes, produções editadas de um material que não é passível de representação – porque, como já sabemos, por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz. Com isso não quero dizer “minha vida é apenas minha”, nem “nossa história é somente nossa”, porque não há vida que tenha um único dono ou uma mesma dona; com isso sugiro que não há vida que legitime nem subjetividade que responsabilize suficientemente alguém por dizer o que diz ou por escrever o que escreve. Não é perscrutando a biocronologia de uma pessoa que vamos achar as causas, as justificativas, os porquês ou as motivações veladas de se pensar o que se pensa. Se eu não assumo um rosto aqui é porque há abutres querendo comer a carcaça do ventríloquo que aqui fala através deste teclado; se nós não assinamos estes textos com nome e sobrenome é porque não faltarão pessoas a nos cobrar recalques, depressões, desejos sexuais perversos de onde supostamente emanam as razões de escrever isto que está publicado aqui há mais de um ano. Não tenho e não temos por que matar esse limbo feliz de uma não-identidade em nome de um princípio de responsabilidade, muito menos sob a insígnia de um regime de visibilidade. Por outro lado, quanto ao medo... (silêncio)... Sinto e sentimos, de fato, muito medo. Se há algo que posso ou que possamos dizer que me ou que nos caracteriza, isso seria o medo. Porque há muito que posso perder e há muito que possamos sofrer com rostos, com assinaturas, com impressões digitais. Assumir um nome, ou vários nomes, seria endossar nosso assujeitamento ou complacência sobre certas posições das quais não me orgulho, nem nos orgulhamos. Sou e somos indulgentes com muitos de quem amamos, e expor essa veia aberta nesse regime de visibilidade me traz e nos trazem problemas éticos gravíssimos. Não posso contar a vida de terceiros aqui simplesmente usando-os como motivo de chacota ou de deboche e também não podemos descrever cenas que muitos considerariam íntimas para censurar-lhes as fraquezas. Não é só pelo fato de eu ou nós considerarmos que a definição de privacidade é fazer cocô de portas fechadas que fará disto um conceito para todos. Há quem não se importe em ver aqui publicada sua história de como foi cagar em um banheiro público sem portas, e esse mesmo alguém pode se sentir prostrado em ver sua depressão, sua insegurança e sua infelicidade contada aos detalhes, às minúcias ricas em ironia, para quem quer ler. De medo estou e estamos borbulhantes.

- Há algo mais que tu ou que vocês gostariam de falar sobre o medo?