Quando ninguém mais nos ama

Te aceito com tudo que vem contigo: tua história, tua proveniência, tua trajetória, tuas certezas e também com os parasitas da acne que perfuram teu nariz. Aceito de bom grado tudo o que te fez chegar até mim deste jeito, e não de outro. Ignoro os erros, o sêmen desperdiçado, as horas de sono que avançaram sobre as aulas da faculdade – ondas que apagam o rosto desenhado na areia. Desvio das tuas dores e das doenças que maltrataram teu corpo, que foram laceando o couro sobre o qual eu hoje me deito, e empurro mais para o lado, suavemente, o viço opaco da tua pele saudosa de juventude. A história de cada um tem essa beleza, a de corroer cada dia mais a arrogância do nascimento. Suspendo por um instante os amantes que te fizeram amar como hoje tu amas, e todas suas músicas e murmúrios lânguidos, sonolentos, suas promessas pretensiosas de paixões eternas que, ria-te se fores capaz, provaram ser cópias farsantes de um romantismo vil unicamente pelo fato de tu estares aqui hoje desejando meu corpo. Meu corpo não te promete, não contrai dívidas contigo; não jura nenhuma verdade, nem entrega amiúde relatório da sua viagem. Meu corpo recebe tua história sem pompa, sem recepção solene, e se insinua pelos teus cantos, esguio, balbuciando palavras frias das quais só se escuta o eco reverberando lá dentro de ti (vazio, apesar da proveniência altiva): “ninguém mais nos ama”.