Interstícios

[...]ei no quarto e senti um cheiro forte de cigarro. Pode ser da noite anterior? Não sei. Eu não fumei, mas os outros fumaram bastante. Eu só bebi bastante, como se isso fosse “apenas” algo, “tão-somente” beber. Beber já é muito. Fiquei pensando: voltei sozinho. Era de manhã cedo já. Dobrei a esquina e nem tinha mais luzes acesas na rua. Só aquela luz natural radiante do início do dia. Lembro de trechos da noite passada, pequenos e curtos trechos, pessoas aleatórias. É isso que quero? Lembrar de recortes das pessoas? Talvez sim, porque lembrar de tudo sempre, viver sóbrio, isso é muito chato. Ainda sinto o cigarro. E sinto também aquele peso de saber que a próxima semana é dura, cheia de trabalho, cheia de leões pra matar, e mato. Matar um leão já é muito, mas mato vários. Tem que escrever, pensar, falar, comandar, açoitar, dizer “sim”. Não sei se concordo com a Clarice quando ela escreve que “tudo no mundo começou com um ‘sim’”. Um “sim” bem dito também fecha portas – as minhas estão a sete chaves, eu vivo a dizer “sim”. Dia desses eu disse um “não” bem sonoro, e a partir dele todo um mundo novo se abriu. Encontrei teus olhos ontem andando pela rua. Acho que eles não me reconheceram. Concordo com a Clarice quando ela escreve que “desistir é uma grande responsabilidade” – e bebo, bebo muito. Já bebi menos, mas eu fumava. Desisti de fumar e ainda não desisti de beber – porque ficar sóbrio o tempo todo é muita responsabilidade. Meu ponto ótimo pro álcool é quando começo a esquecer. E esqueço. Esqueço porque desisto. Quanta responsabilidade, né? Ele só balançava a cabeça concordando com tudo, quanta superficialidade, ali ninguém se afoga, ele é muito raso. E foram nesses pequenos vacúolos, lagunas vazias, que desisti e quis recomeçar. Quanta responsabilidade essa, a de recomeçar. Éramos tão bonitos juntos. Mas fui muito além, lá onde o ar é rarefeito, e ele não pôde me acompanhar. E haverá alguém pra ir até lá comigo? Eu vou andando e não levo as pessoas pela mão junto comigo. Acontece de elas se perderem. Não, eu não me perco das pessoas, eu nunca as encontrei de verdade, com sinceridade, com vontade de estar com elas. Nunca quis estar com as pessoas, portanto eu nunca desisti delas. Vivo nadando nessas lagunas vazias, nesses interstícios vazios. Talvez seja por isso que bebo tanto: porque são lagunas demasiadamente vazias. E foi-se embora tudo que de novo havia em mim: mais uma ressaca, mais uma dor de cabeça, mais um domingo vestindo pantufas e moleton velho, Bach com suas suítes para cello, silêncios entre as cordas: minhas lagunas vazias. Tudo o que há de melhor em mim está escondido, submerso nas lagunas. Nas lagunas vazias e nas ilhas desertas. Longe dos grandes continentes. Era só jogar um beijo, escrever uma carta, dar um sorriso: me escorar na parede, ou na porta recém fechada, e ir escorregando até o chão, me deitar em posição fetal, pedir pra nascer de novo. Não há iceberg que consiga existir nas lagunas vazias. O horário da minha morte será 20:43 – sempre olho no relógio e vejo esses números. Se eu puder programar minha morte, planejá-la, desejá-la, eu queria que ela me chegasse às 20:43. A morte não é o total assujeitamento ao poder, mas sua mais radical resistência: uma desistência radical, um partir, um abrir ou fechar de portas, pequenas mortes com a cabeça escorada no teu peito e tu me dizendo “vai ficar tudo bem”. Eu poderia morrer ali mesmo, encostando na tua camiseta branca de ontem à noite. A palma da minha mão na tua barba cerrada, e eu te dizendo “isso vai ser ruim pra minha autoestima”. Só precisa de autoestima quem não tem uma. Se eu for dormir às 22:00, acordo amanhã às 06:00; se eu for dormir contigo, te prometo um sono tranquilo e sonhos de conforto. Não precisaremos acordar nunca mais. Eu queria um beijo, um teu e outro dele, e dos dois, tão grandes e tão altos, tão bonitos, e eu ali entre os dois um pouco envergonhado por ser o mais baixo e o mais magro, por ser o mais represado. Tão altos e tão bonitos. E se a gente fosse caminhando até ali, ó, onde tem uma curva e um escurinho, ali num canto da casa, será que ali vocês não me dariam um beijo onde ninguém mais vai ver, além de nós? Vocês esqueceram que quiseram me beijar? É um direito que vocês têm. Eu vou procurar cultivar e preservar pra sempre a proximidade da minha cabeça ao teu peito, a proximidade do meu antebraço ao dele. E os pelos se roçando, as barbas se eletrizando. Toda a vez que clico em “entrar” aparece a frase “não há mensagens novas”: não há nada de novo, nenhum corpo, nenhum beijo, nenhum peito onde eu escorar minha testa. Às vezes o toque me satisfaz mais que uma jura de amor ou um presente caro. Vem dormir comigo? Se eu te chamar tu vem? Talvez só nascendo de novo, né, talvez só morrendo com hora marcada e renascendo. Porque eu nunca vou ser assim. Talvez só ocupando esses espaços todos, preenchendo os interstícios vazios, afirmando e encarnando o corpo; talvez só dizendo “sim” a tudo aquilo que sou e que nego, que escondo, do qual me esquivo; talvez só assim pra eu chegar a um ponto próximo da altura de vocês. Talvez só odiando o corpo, torturando o corpo, mutilando o corpo. Ninguém visita, ninguém comenta, ninguém curte. Talvez só fumando, ou bebendo mais[...]