As razões porque sou mais feliz sem ti

[...]é sobre os porquês de eu ser tão mais feliz sem ti. Hoje eu estava no ônibus e vinha pensando nisso: sobre como eu sou tão mais feliz sem ti. Tu foi só o pó que eu espanei de cima de mim.

Não precisar discutir assuntos circulares que acabam retornando sempre para o mesmo ponto inicial, sem alterações de rota. Colocar sempre os mesmos questionamentos, e escutar de volta sempre os mesmos argumentos. Tudo vindo de ti é sempre a mesma coisa, tudo vem sempre da mesma forma. Tudo emana de um mesmo centro desequilibrado e instável, nervoso e ansioso, perturbado com as coisas do passado. Não ter que debater sobre as possíveis traições que tu vê em mim, mas que na verdade são as tuas próprias que tu cospe e cola em mim como sendo minhas por excelência. Não ter que me satisfazer com frases que encerram uma discussão com um ponto final que tem peso de bigorna, peso de verdade, e uma verdade que é tão tola quanto tu: “nós somos muito diferentes”.

Não ter que achar justificativas discrepantes para explicar o que não precisa ser explicado, mas que tu exige que seja unicamente porque tu é um poço de insegurança e infantilidade. Porque tudo e todos te ameaçam, inclusive eu e minha roupa, eu e meu perfume, eu e meus olhares, eu e meu rosto, eu e o tom da minha voz, eu e meu sorriso. É preciso justificar sempre a razão pela qual tu acha que eu estou bonito, e daí é preciso sempre esconder ou dissimular essa suposta beleza para que ela não chame a atenção dos outros. Pois, do contrário, sou eu que estou me oferecendo, e isso é insuportável pra ti. Minha simples existência já é uma ameaça para todo esse mundinho pobre no qual tu vives, e eu não vou me desculpar por ter chegado até aqui da maneira com que cheguei. E te lanço um desafio: vou muito mais além ao ponto de tu me perderes no horizonte magro da tua vida.

Não ter que achar engraçadas tuas piadas, simpáticos os teus amigos, amáveis os teus familiares. Porque eventualmente o são, mas também às vezes não. E porque toda a realidade na qual o teu corpo vem envelopado não é feia nem bela, nem pior nem melhor que a minha: é outra e de uma outridade tão radical que eu sequer entendo o que faz possível eu escrever isso tudo – como se eu pudesse entender a tua realidade, como se eu pudesse analisá-la para apontar aqui e ali e isto e aquilo como sendo as nossas discrepâncias. E não posso. Não tenho acesso à tua realidade, e pra mim a tua realidade não é nem material. A tua realidade não importa e não importa porque meus parâmetros para aferir algo como sendo “realidade” simplesmente não se encaixam nisso que tu chama de “teu mundo”. O “teu mundo”, isso que pra ti é a realidade concreta na qual tu vive, é pra mim o mesmo que um pé de alface, o mesmo que um avião cruzando o céu num dia aberto de sol, é uma nota musical ou o sentimento de desolação por passar cotidianamente pelo morador de rua que dorme ao relento. Isso que tu chamas de “teu mundo” não é mundo pra mim. É outra coisa.

Não ter de elogiar teu corpo repetidas vezes como fazemos com um bebê que recém aprende a falar, ou como fazemos com um cão que está sendo adestrado. Porque no teu caso não é uma pedagogia da recompensa, mas uma pedagogia da alienação voluntária. O teu corpo, assim como o meu, já está em processo de degradação – e vê-se pelas rugas, o tempo está sendo implacável contigo – e não há o que fazer contra isso. A tua obsessão em obstaculizar a passagem do tempo só te dá um aspecto mais anacrônico do que tu já tem. Cansei de dizer ao pé do teu ouvido, na cama, com a luz já apagada, que eu te achava lindo e que era feliz ao teu lado. Sim, eu menti. E menti porque queria que desse certo. A gente mente quando quer que algo dê certo, e eu não vou cometer mais esse mesmo erro. Só não menti quando eu disse que não era pra sempre, que eu não queria passar o resto da minha vida contigo. Porque o resto da minha vida é demais pra te dar. O resto da minha vida é só meu e é muito precioso, não quero dividi-lo com alguém que precisa de fraldas psicológicas diárias, de drágeas de elogios para poder se medicar contra o horror do tempo que toma conta da carne e que faz envelhecer.

Não ser obrigado a fazer fechar horários de agenda com as ligações ao meio-dia. Não ser obrigado a encontrar teu corpo toda a noite. Não ser obrigado a sorrir quando tu achar que eu devo sorrir. Não ser obrigado a conviver com pessoas que pra ti são importantes e que pra mim são apenas mais corpos no mundo que me roubam espaços, oxigênio, água e comida – veja, pra mim eles não são nem “alguém”, são apenas “corpos”. Não ser obrigado a beber de forma comedida, a falar como homem, nem a recusar viagens. Não ser obrigado a fazer escolhas em nome de um “nós” que se resume às tuas vontades e que jamais me contempla. Não ser obrigado a acreditar e a promover um “nós”. Não ser obrigado a abrir mão do “eu” - que por mais dócil e governado que seja, ainda sim é isso que sou e é a única "coisa" que vai ficar comigo até o fim morno da morte.

Pensar que não estou mais contigo e sentir um alívio feliz e reconfortante por não estar mais contigo: já vale a pena ter dito “chega”[...]