Um retorno inesperado

Noite dessas eu parei tudo e fui tentar fumar: saí de casa. Não gosto do cheiro do cigarro infestando meus espaços, a não ser meus pulmões. Escorei na máquina de lavar, na área de serviço, e acendi o cigarro. Fiquei ali olhando em volta: o pó se grudou aos vidros e há mofo no teto. As lajotas do chão estão manchadas e pode haver infiltração de água que produz mofo no apartamento de baixo. Eu já sabia, já pressentia, mas ali mesmo eu soube que teria de sair daqui.

Voltar pra onde, pros braços de quem? Nunca houve. Minhas mãos já estão velhas, já estão ásperas, não dão mais o mesmo carinho. Ir pra onde, levando o quê? O que eu haveria de tirar de dentro de um para por dentro do outro? Carregar minhas coisas, varrê-las e juntá-las com pá, ajeitar as pontas cortantes dentro de uma trouxa de roupa suja e ir embora. Muitas pontas cortantes. Ou fazê-las minha coroa, meu diadema. Arrastá-las, engoli-las, sair andando com todas dentro do meu estômago. Empurrá-las com toda a minha força até onde eu as pudesse ou até onde elas aguentassem. Abraçá-las, embrulhá-las pra levar. Não me distanciar de nenhuma delas, nem do pó que pousa sobre elas, nem das suas manchas. Preservá-las comigo em sua integralidade, mantê-las intactas. Ancorá-las em mim e por mim. Ignorar outras coisas, que não são minhas. Ir apenas pra onde e pra quem aceitá-las.

Ou deixá-las todas, doá-las a quem não tem coisas. Não esquecê-las, mas superá-las. Acho que eu preciso superar minhas coisas todas, uma a uma. Das feias e úteis até as belas e cosméticas. Jamais esquecê-las, ou esquecer de algumas [só das belas] – uma memória reconstituída das minhas coisas, refeitas e redistribuídas ao ponto de despistar meu passado daquilo que ele realmente foi. Porque ele nunca foi realmente coisa alguma – nem a minha coisa. Esquecer estrategicamente das minhas coisas, só de algumas delas, e lembrar de coisas que não foram minhas mas que eu gostaria que tivessem sido. Sim! Isso sim seria superá-las. Distribuí-las de maneira comedida na distância fria da morte em relação ao nascimento: bastante ecumenicamente reparti-las ao longo dessa linha temporal e inundar os espaços com elas – as minhas coisas. E aquela mais doída, mais sofrida, mais triste, essa seria dissolvida ou quebrada em pedacinhos bem pequenos como açúcar e espalhada assim, num movimento rápido, em todo meu passado. Um temperinho de dor, mas só um temperinho que é pra eu ficar bonito – eu fico mais bonito quando estou um pouco triste.

Ou queimá-las. Incinerá-las para que não pertencessem a mais ninguém. Pulverizá-las, triturá-las. Julgá-las culpadas de tudo, as minhas coisas, responsáveis pela minha demência, pela minha indecência. Rasgá-las e fazê-las de adubo para árvores, plantas, legumes e hortaliças. Desligá-las dos aparelhos, eutanasiá-las e cremá-las e com elas dizer adeus a esse moribundo que não morre nunca. Fazê-las morrer e fazê-las partir. Chorar por elas, sentir saudades, pedir pra ser enterrado junto com elas. Viver o luto de perdê-las e viver com sua falta transbordante, com sua falta constitutiva. Defenestrar as minhas coisas. Cortá-las para sempre, extirpá-las e começar a fazer novas coisas minhas. Ignorá-las, fingir que não existem, que são de outro, que não me dizem respeito e que mentem sobre meus defeitos, sobre meus hábitos. Ocultá-las por detrás de portas, dentro de bueiros, em cima de grandes prédios, amordaçá-las. Sequestrá-las e afogá-las. Negá-las e acusá-las de estarem mentindo, acusá-las de perjúrio, pedir a pena capital ou reclusão vitalícia. Fugir delas. Ou traí-las. Traí-las e dizer que não as amo mais, que estou indo embora reconstruir minha vida com outras coisas minhas com quem tenho um caso há vários anos. Deixá-las no vácuo da depressão e da solidão.

As minhas coisas: o que posso fazer com elas antes que meu cigarro apague?