Enganos

[...]anado, muito e redondamente. Eu lembro de ter me esquivado um pouco, de ter sido reticente. Okay. Mas isso não nos dá o direito de tomar os lixos como o jeito privilegiado de levarmos a vida. Tu te engana quando diz que foi assim, que sempre foi assim, que desde o início tem sido assim. Que nunca mudou. Eu não sei que narrativa linear de tropeços e entrecruzamentos é essa que nós estamos tentando reconstruir. Sim, eu vou revisitar os nossos cantos obscuros quantas e quantas mais vezes me forem necessárias. Se tu não quiser ir lá comigo, não precisa: fica aí nesse canto estreito onde cintila a luz. Eu prefiro os nossos breus, os nossos lusco-fuscos. A escuridão é mais criativa, mais surpreendente. Não, é um engano teu. Não te dou o direito de reconstruir a nossa história, que é também um pouco da minha história, a partir do eixo daquilo que sempre foi dito da mesma forma. Não é a repetição que nos trouxe até aqui da forma com que chegamos aqui. Não é recriando uma inteligibilidade racional que vai nos fazer parar. Não adianta falar, verbalizar, desenhar, escrever, tirar fotos: Freud e Lacan estavam errados. Eu quis retornar para aquele lugar, para aquela parede e para aquele pilar, tantas vezes. Eu quis repetir aquela roupa, aquele corte de cabelo. Pedi para o DJ tocar novamente aquela mesma música. Eu cheguei a olhar no relógio naquela mesma hora. Mas tudo já foi embora, já foi longe, tudo é tão radicalmente outra coisa. Não, tu te engana e ainda tenta me enganar: eu voltei lá, eu te chamei pra voltar. Chamei por ti, chamei pelos outros. Nenhum voltou. E mesmo que tivessem voltado, seria outro que os chamaria, não eu – não o mesmo eu. Não há bonecos de cera ou obeliscos lá onde nossas histórias começaram. Eu recolhi pedaços do que eu lembrava, uma memória bastante entrecortada devido ao álcool, mas recolhi com carinho e emoldurei na minha mente: não adiantou. Eu revisitei essa memória tantas vezes, e ela mudava tanto. Sim, estou te dizendo. E quando eu os reencontro, tu inclusive... Não são os mesmos. Não são. E tu vem me pedir pra “deixar, pra esquecer, pra silenciar e não falar sobre o que não foi dito”? Eu quero mais é mexer na merda mesmo. Eu levei um susto quando eu o reencontrei – na verdade foi ele quem me achou. E não foi como da primeira vez; ou melhor, foi. Como sempre, ele sente meu cheiro à distância, ele reconhece meu rosto e meu corpo. Ele sabe quem eu sou, ele sabe quem eu fui, ele sabe que eu posso ser outro, mas que esse outro pode também ser bonito a seu modo. Foi mais frio, mais triste dessa vez. Mas não foi feio. Não éramos mais nós – aqueles nós de dois, três anos atrás. Os nós de hoje, tão psicanalisados, tão tratados, tão descolados (e deslocados), tão moderninhos: os nós de hoje ainda pensam que são os nós que se encontraram da outra vez. Trocamos umas palavras cintilantes e calamos. Investimos num silêncio gostoso, com a diferença que o último silêncio que nos envolveu nós estávamos um dormindo no colo do outro. Quantas noites, mesmo quando um terceiro ainda se deitava na minha cama, quantas noites eu lembrei com uma ponta de dor e uma maré de saudade daquele último silêncio. Aquele me rodopiava, que me fazia dançar e sapatear: aí está ele de novo. Mas é novo? Não sei se é novo, radicalmente novo, mas é estranho, é estrangeiro. E tu vem me pedir pra não falar? Tu está enganado. Eu vou falar, sim: vou me esgueirar por esse lixo que a gente deixou entre nós, me arrastar por entre o lixo que a gente deixou acumulando no nosso breu, e eu vou gargalhar esse reencontro de dois estrangeiros estranhos. Não te dou o direito de recontar uma história que é a minha, nem te dou o direito de me fazer calar. Eu vou falar, sim. Vou falar sobre ele, sobre como eu o desejei, sobre como eu fui ridículo gostando dele, sobre como eu fiz coisas patéticas pra ficar com ele. Sobre como eu desliguei o telefone dizendo que ia dormir e na verdade fui abraçá-lo, beijá-lo; deitar no colo dele pra ficar em silêncio. Eu vou falar, sim, sobre como eu menti pra ficar com ele, sobre como eu fantasiei ficar com ele. Até pra conjurar qualquer esperança de que ele seja o mesmo. Agora que já posso falar, que já posso gritar e gargalhar o que eu quiser, no escuro e no breu que eu quiser, eu vou desfazer a moldura da memória que tenho do nosso primeiro encontro. Vou jogá-la fora. Vou me sentar ali, ó, por entre aquelas coisas todas que eu e ele não nos dissemos, vou me sentar bem no meio do nosso silêncio um no colo do outro, que é a única coisa de nós que se manteve mais ou menos incorruptível, que é a única coisa de nós que pode se repetir, que é a única coisa de nós que essa tua baixeza não pode confiscar. Vou me sentar ali e só vou ficar ali gostando de estar ali. Não, tu está enganado: quando eu quiser falar, eu falo; quando eu quiser calar eu calo, e eu vou calar no meio do breu e do silêncio pra tu nunca mais me reenc[...]