Intramuros

Não há nada no mundo que me faça suar. Nada. Porém, hoje eu senti um desânimo profundo – em outras épocas eu seria mais sincero: diria que era medo mesmo – em ter de entrar em casa. Abri a porta e me virei de costas para a abertura na parede. Entrei de marcha ré na minha casa. É um horror cada vez que vejo, é um horror! É uma maldição! Limpei tudo: a louça, as roupas, aspirei o carpete. Um horror. Uma parede da minha casa começa a se encher de mofo, e eu finjo que não vejo. Eu finjo que não vejo, finjo que não falo: dissimulo e faço teatro desta minha condição. Da minha garganta saem dragões, os dragões que habitam minha garganta, e me dói. Tu me vem com essa furadeira, com essa machadinha, cortando e separando, fazendo de pedaços em pedaços o pouquinho – bem pouquinho – que tenho a esconder de ti. Não há parte de mim que não cintile quando tu me põe os olhos. E vai crescendo na minha mente, tomando volume, adensando: tu perfura e penetra meu crânio, quebra o muro dos meus ossos. Não dói, e eu adoro. A pior parte é enganar os demais: “não há raio de luz em mim”, quando há, sim, e eu tento encobrir com minha roupa. Com a manga do casaco, com o cachecol. Pergunte que eu te respondo, mas pergunte! Pergunte em voz alta, olhando pra mim e fazendo uma breve introdução: “eu sei que tu não vai mentir se eu perguntar, então eu vou perguntar”. Pois pergunte. Pergunte que eu respondo, e respondo em voz alta. Não há nada no mundo que me faça desistir de deixar tu entrar. Entre e se perca sem demora. Me dói aqui atrás, bem abaixo dos ombros, num ponto médio das escápulas, onde ficam minhas lembranças. Para minha sorte, ele fala outra língua, ele não entende o meu corpo. (a) Não há lugar pra mim extramuros. (b) Permaneço no exílio. (c) Quebro minhas próprias regras. (d) Abaixo meus olhos. (e) Sorrio no canto da boca. (f) Puxo o lábio superior direito ao pronunciar o meu “s” sibilante. (g) Não saio correndo para tropeçar, com a desculpa de ter que pedir ajuda depois para me levantar. (h) Homem, homossexual, homofobia, hosana nas alturas e nas baixezas. (§) Paro de cantar. (&) Não conheço os limites que tu pode me impor. (@) Tu não percebe o quão longe eu fui. Já estou no segundo comprimido da décima terceira cartela. Se dependesse de mim eu continuaria tocando a tua mão, e se tu viesse me perguntar o porquê eu responderia em voz alta. (i) Não se levante, não desenhe, não escreva sobre isso. (j) Pare agora de escrever sobre isso. (k) Mais nenhuma palavra; elas podem perder o controle, podem se materializar. (l) Não pense mais nele, nem redija textos sobre ele, nem textos sobre o que tu pensa que sente sobre ele, nem textos sobre o que tu pensa que ele sente por ti. A hipocondria pode te salvar, mas há um preço caro para pagar. O fígado, uma geleia. O pâncreas, insuficiente. O cérebro, uma sopa. O coração, uma engrenagem. Vou continuar arrancando os pelos das minhas orelhas com a pinça enferrujada que guardo comigo, junto com outras duas mais novas – meu corpo deu pra ser sincero depois de certa idade. Nada me dá mais prazer hoje que cortar minhas unhas e arrancar os pelos das minhas orelhas. Pode não aparecer, mas tenho um pelo enorme, branco e fino, bem no meio da minha testa. Não há outra pessoa no mundo que vai te fazer ver isso, um dia tu vai dar valor pra essas coisas peludas e enferrujadas que tenho aqui dentro dos meus muros de ossos. (m) Feche a mão em concha. (n) Assassine a criança que pede pelo balão a gás. (o) Na cozinha eu afio a faca. (p) Na sala eu rasgo as paredes. (q) Não chame por ajuda, aguente. (®) Poderia haver uma saída pra mim, mas não nesse corpo, não nesse mundo: e, de qualquer forma, é só o teu corpo que me serve de entrada. Vou deixando que tu vá, e tu vai, e tu desprende de mim. Não há nada no mundo que me faça chorar, mas hoje eu entrei de costas na minha casa com medo de chorar. Se há algo que pode me fazer chorar, isso existe intramuros. Tu me pediu, eu sei que tu me pediu, mas eu não posso ir até lá contigo. Poderia ir se tu me jogasse uma âncora, mas não me imagino exatamente como um barco ancorado. Não me vejo velejando. Não sou do mar, menino das águas extensas. Se eu não vejo, eu sinto o cheiro. O problema é que, no teu caso, eu vejo E sinto o cheiro. (s) Tu me escuta? (t) Tu saiu e nunca mais voltou. (u) O remédio começa a fazer efeito. (v) O fígado para de funcionar. (w) Faliu o corpo sem outro corpo, foi encontrado dias depois pelo cheiro, não pelo carinho. (x) A vida sem ti, seja na minha imaginação ou quando tu não vem tomar um chimarrão, me dá sono. E como tenho estranhado a luz do meio-dia, os paralelepípedos da calçada úmida. A gota de chuva que cai na minha nuca e que me estremece. É impossível de haver fora de mim um lugar mais seguro pra ti nesse mundo. (y) Pare de escrever sobre ele. (z) Pare de trazê-lo para o texto, pare de dedicar este texto a ele. (*) Saí de casa hoje só para conseguir um abraço teu, e tu me deu uma flor. Que jeito lindo de derrubar meus muros e de se espraiar por todos meus cantos. Que belo, que sentimento morno, que aconchegante que é a tua presença nisso tudo que construo. Um trovão, e eu sem ti - isso deveria ser proibido por lei.