Ontem, antes de dormir

[...]atro cobertores sobre mim. Não está tão frio, eu diria inclusive que está quente, que está úmido. Mas eu gosto do peso, sabe, do peso dos cobertores. Imobilizam meu corpo sobre o colchão, me impedem de cair da cama. Ouço um parabéns a você no apartamento ao lado – quem será que tem a inglória tarefa de viver mais um ano? Os cobertores... Eu poderia dormir novamente, mais treze horas ininterruptas. Sem remédios, sem truques químicos. Dormiria com esse poder imaginativo cruel e perverso que me faz achar carinho em qualquer corpo. E acho. Não há ninguém aqui desse lado da cama, nunca houve, é só um espaço oco por dentro, uma casca sem conteúdo – pois o conteúdo e a substância eu mesmo enxerto, eu mesmo dou conta de preencher. Quem está de aniversário hoje? Quem comemora esse dia? É com profundo pesar que me deito dentro dos teus olhos e mordo tenramente essa tua boca linda: eis o conteúdo da casca oca que jaz ao me lado, toda noite, na minha cama. Como tu é bonito! Ao alcance da minha mão, a tua: dedos e unhas, pele, ossos. Bastante concreto. Minha imaginação me presenteia tão somente com um abraço durante a noite, assim, um pouco inconsciente por causa do álcool, um pouco consciente demais também e justamente por causa do álcool. Tu vem e senta na beirada da minha cama, eu quase dormindo, e tu me pede com a voz torta pra se deitar comigo debaixo dos cobertores. Eu respondo que ‘sim’ um pouco confuso pelo sono, mesmo não entendendo direito o que tu quer, mesmo estando um pouco nervoso, mesmo pensando que talvez o melhor fosse negar o pedido e dizer que nossa relação não é dessa esfera, mas de outra. Eu aceito, todavia. Tu te enfia debaixo dos cobertores pesados, cola teu peito e tua barriga nas minhas costas, me abraça e coloca tua mão direita sobre meu peito. Meu coração já bate bem forte, e o teu também, eu posso sentir. Entrelaço meus dedos nos teus. Depois de um silêncio um pouco constrangedor tu me pergunta se pode dormir ali. Eu respondo ‘sempre’. Os cobertores pesados nos imobilizam: tu nunca mais vai conseguir sair da minha cama, pra sempre preso dentro da casca oca ao meu lado[...]