Telefone sem-fio

[...]ão podia sequer olhar, nem dizer nada. Era terrível, mas de certa forma ele se sentia melhor assim: não precisava assumir, sabe? Não precisava arcar com a responsabilidade – e era uma responsabilidade. Era uma vida ali diante dele, era uma história, um punhado de lembranças. Era um homem ali na frente dele, um homem de talento, e ele teve medo desse homem. Eram dois homens, um com todos os “sim” do mundo, o outro com todos os medos.
(Não me perturbe com limites de cartões, com saldos negativos em conta corrente. Me deixe falar dessa história, me deixe narrar. Não me interrompa, nem me faça escutar o som da tua respiração).
Entende? Ele perdia noites de sono embarcando nessa loucura, nessa realidade non-sense, fantástica: um homem pensando no outro. E nessa viagem, ele escutava as copas das árvores produzirem o som alto e ruidoso de quando o vento de temporal bate nelas, e ficava cronometrando um tempo que só ele entendia entre o vento bater nas copas das árvores e derrubar as primeiras folhas no chão até escutar os primeiros pingos de chuva baterem no telhado da casa. “Eu gosto de ouvir a chuva chegar, tu não? Acho que agora eu consigo dormir”, falava ele baixinho, meio sussurrando, para um lugar oco que ficava ao lado dele na cama – em qualquer cama –, fantasiando que havia alguém ali. E quem diria que não havia? Ele escutava todos os pingos caírem, todos, e todos os ventos baterem nas copas de todas as árvores. Ele contava cada folha caída. E no final de tudo, ainda não dormia. Ele voltava a sussurrar: “Eu não consigo dormir, mas tudo bem, não tem problema, o que eu gosto mesmo é de acordar e saber que tu tá aqui comigo debaixo dos cobertores”. Parava a chuva e parava o vento: ele continuava acordado ao lado do lugar oco. Ele não se importava.
(Olhe pra mim quando eu falo. Detesto a tua mania de olhar pro nada e levantar as sobrancelhas, sugerindo que está incomodado com a história que eu conto. Eu cheguei à conclusão de que não há outra maneira de tu me entender se eu não te falar tudo, e do jeito que eu bem entender, e tu tem que escutar. Eu sou um pouco de ti, um amontoado de carne que derivou de ti. Não vá achando que isso que sou é tão diferente de ti, porque não sou. Agora olhe e escute).
Ele me disse que não sabia o que iria fazer. Que tentaria fazer qualquer coisa, tomaria qualquer atitude, e que qualquer atitude seria melhor do que fazer nada, mas que sentia medo. Eu argumentei o contrário: eu disse que era pra ele ser feliz e arriscar, mas que era pra tomar uma atitude que o valorizasse, que permitisse que ele vivesse algo de bom. Eu acreditava que poderia dar certo. Ele negou com a cabeça. Disse que da outra vez que tentou arriscar, ele acabou recolhendo os dentes mortos do outro no asfalto. Me falou com dureza da profunda impossibilidade que tinha em negociar com a previsão de um “não, não é isso, tu está enganado, é uma outra coisa”; mas que, de verdade, o que mais lhe doía era a chance do “sim, eu topo, eu também quero, vamos tentar?”. O que fazer com esse mundo que se abre, com essa vida imensa, com essa história singular e esse punhado de lembranças que dizia “sim” – um “sim” grande, volumoso – pra ele bem na sua frente, sorrindo: corpo denso, corpo lindo, se insinuando e dizendo que quer ser dele? O que fazer com isso tudo: ele não tinha braços suficientes pra abraçá-lo, pernas suficientes para atravessá-lo, boca suficiente para comê-lo. E ele queria “comê-lo, degluti-lo, mastigá-lo, lamber sua língua”. Havia muita vontade nele, e isso me preocupava.
(Nojo? Que nojo é esse que tu sente? Nojo de eu ter tentado, de eu ter vivido? Sinto muito se a tua escolha foi ignorar isso tudo que eu vivo hoje. Porque eu vivo, sim, e vivo com intensidade. Mergulho nisso que tu chama de lixo).
Eu sugeri que ele pusesse pra fora. Não precisava ser com palavras, como estou fazendo agora, mas poderia ser com um toque. Ou com uma música – que lindo seria, com uma música. Um filme. Uma caminhada na chuva fina. Um momento de silêncio sentado ao lado dele, corpos próximos. Eu sugeri um carro de som, uma drag queen cantando “with or without you”, uma chuva de pétalas de tulipas negras. Ele riu e disse que não. Ele ficou quieto de repente, desfez rápido o sorriso. “Eu vou esperar desaparecer”, disse, mexendo na pele das mãos, já bem enrugadas e judiadas. Suas mãos judiadas. Tem gente que é assim, sabe? Tem gente que espera as pessoas e os sentimentos desaparecerem – egoístas que são, ficam lá fingindo que nada houve, que nada aconteceu, que nada mexeu com elas –, e tudo e todos vão embora mesmo. As pessoas, aquilo que sentimos por elas: vão embora, se esvaziam. Senti uma pena muito grande dele. Fiquei olhando ele mexendo na pele das mãos, depois limpando os farelos de torrada que caíram na calça, a cabeça baixa, resignado pela dúvida, paralisado pelo medo do “sim” imenso e volumoso que estava na frente dele. Um grande “sim”, um “sim” corpulento, um “sim” viçoso. E ele limpando a sujeira embaixo das unhas já crescidas. “Não vai tentar mesmo? De nenhum jeito?”, eu perguntei. “Desistir já é uma forma de tentar”. “Que covarde”, provoquei. Eu relatei as noites de insônia falando sozinho com lugares ocos na sua cama. Relatei todos os pingos de chuva, e todos os ventos soprando em todas as copas de todas as árvores, e contei uma a uma todas as folhas que caíram. E disse pra ele: “depois de tudo isso tu continua aí, falando sozinho, dormindo ao lado de um espaço oco. Tu já escutou toda a chuva, e todo o vento, e todo o som do temporal e ainda continua aí sozinho”. Eu fico preocupado com ele: o que vai restar ali? Se ele não tentar, o que ele vai fazer com tudo isso dentro dele: todas essas frases sussurradas no meio da madrugada pra ninguém, todas as fantasias e as situações que ele simula naquela cabeça baixa e tristonha, onde ele vai botar isso tudo? Tenho medo que ele acabe enlouquecendo, matando alguém ou se matan[...]
(Pronto, acabei. Agora pode te levantar, pode sair. Não, não comente nada. Não quero saber o que tu pensa disso, não quero saber a tua opinião. Só te levante a saia daqui. Vai, sai. Viva com isso que te contei, se puderes).