Silêncio absoluto

Apenas isso, e já estava de bom tamanho. Umas reticências antes de cada frase, pra início de conversa, e tudo parecia que já estava dito naquele breve lapso temporal em que os olhos de um desviavam dos olhos do outro pra começar a frase. Apenas isso, e já se sabia o que viria em seguida.

Enfiar o dedo no nariz; limpar o nariz; olhar em volta. Fazer uma bolinha com a sujeira recém tirada graças à prospecção da unha um pouco mais crescida que o habitual. Aguardar alguns instantes e deixar cair a bolinha da sujeira do nariz no chão ou, se muito pegajosa, grudá-la em algum objeto próximo. Certificar-se de que ninguém ao redor testemunhou essa pequena nojeira. Extrair prazer desta infâmia por ela ser, em primeiro lugar, reprovável e, em segundo, invisível. Inaudita. Altamente censurável, mas exequível.

Por outro lado, limpar a boca. Não apenas escovar os dentes, mas de fato limpar a boca. Passar o fio dental cuidadosamente em cada face da junção entre os dentes. Tirar os restos de comida que ficam entre a gengiva e os dentes. Fazer isso em cada uma das junções, da arcada superior e da arcada inferior. Depois escovar os dentes, grandes dentes amarelados, escová-los com calma e perícia, de todos os ângulos possíveis, forçando para alcançar imensos cisos lá atrás. Escovar para fazer bastante espuma. Enxaguar e cuspir. Pegar uma outra escova de longo alcance e escovar somente os cisos superiores, esquerdo e direito, com ardor e bem lá no fundo da boca. Enxaguar e cuspir. Medir 30 ml de fluor líquido, bochechar por um minuto. Cuspir. Uma belíssima boca, asséptica e sozinha.

Foi promovendo tais limpezas profundas e significativas que ele habitou sua casa naquela noite: noite de velório. Uma parte de si havia morrido: nas noites de velório um silêncio absoluto o acompanhava e se avolumava pelos cantos, na casa inteira. Ele limpou o nariz, limpou a boca e limpou todas as demais cavidades que mereciam algum tipo de atenção especial. Em breve aquela casa não seria mais dele, e ele teria de esquecer de tudo, recomeçar de outro lugar. Sempre que havia um recomeço ele fingia não guardar lembranças das dificuldades, dos cheiros e das sujeiras. Promovia limpezas: o silêncio era uma maneira de limpar os espaços já tão densamente carregados da sua presença.

Quisera ele pudesse arrancar o outro de si como o faz com a sujeira que ele tira do nariz: limpar suas cavidades da presença do outro, limpar seu corpo dos resquícios da mastigação do outro. Enxaguar e cuspir o outro. Contra aquela presença insidiosa do outro ele outorgava o silêncio. Se tudo desse errado, na manhã seguinte ao velório ele partiria para o exílio. Nem aos cães de guarda ele avisaria de seu adeus: a despedida, talvez a mais sincera e autêntica contribuição que ele poderia dar, seria ir embora todo envelopado num silêncio absoluto. E não haveria saudade. De ninguém.

Porque não era possível limpar as vontades do seu corpo como ele tão habilmente limpava seu nariz e sua boca. Não havia como escovar o outro de si. A sensação que tinha era a de estar quase se precipitando no abismo, mas segurava o passo mesmo assim, pois a queda livre seria deixar-se ir com a loucura: seria chorar e gritar, ajoelhar-se aos pés do outro e pedir que não o limpasse da sua vida. Queria permanecer dentro dele como a sujeira do nariz, como o resquício de comida entre os dentes. Queria envelopar o outro no seu silêncio e velar o corpo do outro num velório permamente.