“As dobras do corpo já não são mais as mesmas”, ele pensou. Estão mais curvas, mais arredondadas, mas flácidas. “Algum dia forma diferentes?” Viu com certa resignação a impossibilidade de alcançar com a mão e o sabonete porções das suas costas. “Permanecerão sujas.” Os pés mais secos, a pele do rosto mais esburacada. “Estou inchado debaixo dos olhos, e as pálpebras estão caindo.” Quando criança, ouvira sua mãe uma vez dizer a uma tia que, de acordo com o mais recente sermão do padre, era um pecado soterrar talentos. Um pecado. Havia quanto tempo que ele não entrava numa igreja? “Há pouco mais de um mês!” Surpreendeu-se. E não fora um momento de pânico no qual precisara pedir, requisitar, demandar. Fora apenas para agradecer. “Os bancos frios e duros da igreja, quando eu era criança... Eu ajoelhado; os joelhos doíam.” Solicitações e regozijos. Tudo mais ou menos enterrado naquele corpo. A lucidez à míngua, o ocaso de qualquer prega com o real, com o concreto. Desajoelhando-se do mundo. “Vou-me perdendo e me separando, escorregando para fora.” A água ainda caia, quente. Perguntou-se acerca dos dias inteiros e ininterruptos que simplesmente não saía de casa: era justo consigo? Acasulando-se, enovelando-se, rodopiando-se como um pião nos fios longos da recusa a qualquer contato. “Acabo estranhando gente, a gente toda, quando elas falam e quando elas caminham; me perturbam.” O mais perto que chegava das fronteiras rente à gente toda era na sua sacada, imensa, cortada por um horizonte impressionante a perder de vista. Da sacada via a tempestade chegar em nuvens de chumbo, e o sol, e o vento, e a abóboda celeste inteira alegrando-se com o coaxar dos sapos. “As noites são ao menos felizes.” E escuras. Nunca dormira em um quarto mais escuro antes. Com medo da escuridão – não o medo infantil, mas o medo adulto, o medo de não acordar nunca mais –, experimentou deixar a porta do quarto e a cortina da janela da sacada abertas durante a noite. Já não haveria o perigo de dormir para sempre. “Hei de me despertar com a luz do dia.” Passou, então, a tomar remédios para dormir. Pois não podia pegar no sono com tamanha claridade vinda da rua, dos postes, das outras casas – eventualmente, da lua. “Pois há luz ofuscante até nas minhas noites felizes!” Tomava dois comprimidos de relaxante muscular, quando meio era suficiente, dado seu peso. Era um modo de adensar as paredes, finas demais em sua opinião, que o separava dos vizinhos. Todas as manhãs a vizinha de cima acordava às oito e punha-se a tossir; não raro, o casal do apartamento ao lado fazia sexo com trilha sonora da cantora Enya. Ele sobressaltava na cama. Culpava-se pelo cigarro e culpava-se pela solidão. Fantasiava acabar seus dias em uma maca de hospital público esquecida em um corredor lotado, já velho e sem forças, sem dentes, pendurado a um soro pingando lentamente e a uma sonda cuja cânula jamais era trocada. Ninguém o tiraria dali, nem o visitaria. “Vou ficar pra sempre solteiro mesmo...” Culpava-se por não fazer sexo com trilha sonora da cantora Enya. Um pouco de tudo estava soterrado nele. Um imenso pecado, diria sua mãe.