O céu do sul é menor que o céu do centro.


Do centro?


É. Do planalto central.


Em que sentido?


Lá é maior, mas largo. A embocadura, o gargalo... mais amplo. Sabes? Vemos grandes distâncias de qualquer ponto. Tudo muito plano, tudo muito alto. Vemos longe.


Aqui tu vês curto, vês pouco?


Vejo muito, mas tudo muito fragmentado, de uma forma entrecortada. As montanhas, as pessoas, tudo muito reunido e agrupado. A vista não comporta ver tanto. A montanha impede que se veja o horizonte.

Mas a montanha pode ser, ela própria, um horizonte.


Sim, é verdade. Mas ela fica próxima demais da vista. É isto: lá no centro é plano, aqui não. Então, lá dá pra ver mais longe, e o céu encontra a terra sempre bem longe da vista. Aqui não: o céu encontra a terra quase em todo lugar, bem no nosso nariz. No nariz de todas as pessoas, agrupadas, reunidas.


Tu desejas separar as pessoas?


Não. Cada uma tem o céu e o nariz que merece.


[silêncio] E qual o céu que tu mereces?


[silêncio] Eu aprendi a amar o céu do centro. O sol do centro. O sol do centro demorava mais tempo para sair da terra e para encontrá-la novamente. Caminho difícil, de muita paciência. É lindo, lindo.


É o céu do centro que tu mereces?


Nenhum céu. Não havia nada, nenhum céu, nenhum sol. Nada lá no início, antes, bem antes. Não havia essa luz, esse brilho. Sabe? Era opaco, um pouco morno. Não tinha essa força.


Início de quê?


Da dor.


[Silêncio.] Qual dor?


De manter-se em pé. De andar. Não tinha essa dor, não tinha esse céu, nem o sol.


A dor veio junto com a força e com o brilho?


Veio, claro. A dor trouxe a força. Banhou de brilho. Um sol radiante percorrendo um céu glorioso.


Tu não conseguia te manter de pé nem andar por causa da dor.


Sim. Era uma dor paralisante.


Não entendo como essa dor paralisante trouxe brilho, força... e céu... e sol...?


Nem eu. Mas eu fui descobrindo o quanto tudo brilhava justamente porque engatinhei, andei de quatro. Tudo brilha rente ao chão. A força que a dor trouxe veio para me distanciar do chão, pra me erguer, pra colocar um pé depois do outro e pra equilibrar. Todos os dedos dos pés, os músculos e os nervos precisam de orquestra, de regência, de maestro. É uma verdadeira sinfonia, uma ópera em vários atos. Se eu hoje consigo me pôr de pé e andar, como eu não conseguia antes, eu sou o sol. Eu, sendo sol, percorro o céu, eu abraço o céu.


Mas então a dor não era tão paralisante assim.


Era inabilitante. Roubava minhas habilidades.


[Silêncio.] Então tu mereces um céu glorioso, já que és um sol radiante.


Sim, mereço. Porque toda abóboda celeste um dia cai e se estilhaça.


E o sol?


O sol é justamente o furo, o espaço vazio. Um buraco esplendoroso.


O sol não é um elemento do céu?


Não. O sol é uma passagem, uma conexão.


Com o quê?


[silêncio.] Eu não sei. Porque quem vai para além do céu só passa por mim sem deixar nada. Não manda lembranças, nem recados. Só passa, atravessa o céu, desaparece. Eu sou essa lacuna, esse vacúolo. Eu sou o sol que brilha o vácuo, que irradia o oco.