[olha para as unhas, em silêncio]

No que tu tá pensando?


[pousa uma mão sobre a outra] vi um trecho de um filme hoje, logo quando acordei. eu estava um pouco sonolento, talvez ainda sonhando. mas fiquei bastante impressionado com o que eu vi, ou com o que eu pensei ter visto na cena. fiquei perturbado.

Como era a cena?

uma mãe precisa abandonar o filho porque assassinos querem matá-lo. ela precisa escondê-lo dos assassinos. ela deixa o filho, que é pouco mais que um bebê, dentro de uma cesta, em uma carroça. na cena, dá pra ver a criança refletida na íris, na pupila da mãe. eu, espectador do filme, vi a criança por meio do reflexo dos olhos da mãe. a mãe olhava diretamente pra mim, na tv. mas não era eu refletido nos olhos dela: era a criança prestes a ser abandonada. em seguida, a mãe sai correndo e chama a atenção dos assassinos para si. é um modo de despitá-los.

Tu te sentes abandonado?

eu me sinto abandonando. é isso, um movimento contínuo, um fazer perpétuo do abandono. eu abandonando as pessoas, o mundo. é como se o meu reflexo nos olhos dos outros fosse sempre aquele, de quem está sendo deixado.

[Silêncio.] Qual era o filme?

kung fu panda.

[Risos.] Eu imaginava que fosse um filme de guerra, ou algo assim...

não. é um desenho animado, bastante frugal, bastante simplório. mas as coisas aderem na gente, grudam de alguma maneira. podem vir da coisa mais idiota, mas entram. é quase como a agulha do soro, intravenosa.

Uma agulha?

sim. há cenas, há palavras que são intravenosas. eu, que estava diante da mãe, não estava refletido no olhar dela. ou deveria estar?

Talv[...]

é a mesma coisa quando assisto a um filme pornô. [silêncio.] me excito assistindo a filmes pornôs em que há uma mulher e dois, ou mais homens. me excito quando eles se encostam, se tocam, na ânsia de penetrar a mulher. me excito quando o olhar dos homens desliza e, mesmo que por um segundo e mesmo que o alvo seja o rosto da mulher, encontra o pau ou a bunda do outro.

Onde tu está nesse jogo de olhares, então?

em nenhuma parte. [volta a olhar as unhas.] em lugar nenhum. há corpos que não são olhados, não têm o direito de ser olhados. ninguém olha pra mim. e quando olham, como a mãe do filme, não sou eu lá no olho dela.

Tu acha que ninguém te olha?

acho. eu lembro que tinha uma época em que eu ficava muito em casa. dias sem sair de casa, três ou quatro dias sem falar com ninguém. daí chegava o momento em que eu precisava de pão, água. eu ia ao supermercado e jogava o carrinho de compras contra as pessoas, contra os carrinhos delas. forçava uma colisão. pra eu ter certeza de existir, de que eu não tinha morrido ainda. pra mostrar pras pessoas que eu estava ali.

E alguém te olhava?

não lembro. não me recordo de alguém ter me olhado. só lembro do gesto, da atitude, da técnica. colidir com os outros.

Hoje tu continua colidindo com as pessoas pra ter certeza de existir?

não. hoje eu falo palavras intravenosas pras pessoas. palavras que grudam, que entram na jugular. falo coisas feias, coisas podres, que rasgam as artérias dos outros. ou assim eu desejo.

Talvez seja por isso que tu sente que está sempre sendo deixado.

por quê? porque eu sou insuportável?

Sim. Se tu diz coisas feias e podres pros outros com o intuito de rasgar suas artérias, é possível que ninguém queira ficar perto de ti.

de um modo ou de outro, eu consigo confirmar minha existência. existo tanto, tanto, mas tanto, que ninguém me suporta.