"o cheiro do fracasso impregna tão pesadamente que agora até minha pele está exalando este fedor", disse um personagem de desenho animado às 22 horas e 15 minutos de um dia de semana, num desses canais de tevê paga cuja programação é voltada para as crianças. é esta uma das corredeiras através das quais desagua o conteúdo do buraco, da fenda, do vacúolo? ou teria sido mais importante, e profilático, ter estancado o próprio cavocar que forjou o buraco que viria a ser preenchido até a borda com o fedor? durante as conversas mais profundas, mais terríveis, eu desvio o olhar do meu interlocutor e pouso a vista em algo que escapa da mirada do outro, por um instante, para formular uma ideia que não seja capturada em seu processo de feitura, para evitar o vacilo e desinteresse do olhar do meu interlocutor - que me perturba e me empurra para fora do vagão em trânsito -, e em seguida eu volto a seus olhos para dizer nada do que eu havia formulado. foi assim muitas vezes hoje. a felicidade dele um pouco enviesada, díspar em relação à cor bronzeada da pele, irredutível aos movimentos dos braços e ao emprego dos adjetivos de intensidade, me fez contornar a imensidão corporal e o continente de sentimentos para rapidamente encontrar-me atrás dele, na parte além da sua falésia, na parte de fora da  pele das suas costas, eu em frangalhos, eu em destroços, "eu me despeço; eu em pedaços". alguma força estranha varreu meus cacos na sarjeta, juntou-me na pá e me trouxe para casa num punhado. que cheiro tem o fracasso que já dura três décadas? na mesma medida em que eu desviava do olhar do meu interlocutor meu corpo se encurvava, como haste elástica torcida, com as pontas moles (mãos, pés e cabeça) que pareciam derreter-se como gelatina pouco máscula, pouco viril, pouco tesa. o fim do dia é isto: assistir ao desenho animado num dia de semana, num desses canais de tevê paga cuja programação é voltada para as crianças.