hoje meu coração disparou PARTE II - alínea b

 [a trilha sonora deste trecho é, como não poderia ser de outro modo, "freguês da meia noite", na voz de quem fala de espera, angústia e desejo.]

então marcamos de encontrar no Largo do Arouche, número 346, às dezenove horas, quando a temperatura chegasse aos oito graus Celsius. frio. às dezoito e quarenta e três já fazia nove. e lá o esperei. Nestor chegou mal agasalhado pra aquela noite.

- você é sempre pontual?, ele perguntou se aproximando do meu rosto para um abraço (foi quando senti o mau hálito [aguento ou esqueço ou fujo; ele bebe demais e eu também; algo temporário ou permanente; e de manhã cedo, será que é pior?], e pensei em interromper o encontrinho ali mesmo mas ele sorriu ao tirar a máscara, e eu por aquele sorriso eu fiquei, eu ficaria, eu ainda estou).

- sempre, respondi, e tu é sempre calorento? 

- vim pra me aquecer.

arrá!, meu cão não late em vão. fingi ser democrático e perguntei qual vinho beberíamos. eu já havia escolhido: uma garrafa do novo mundo, África do Sul. ele sugeriu um vinho português, mas eu argumentei que a noite pedia uma uva densa. ele concordou. sugeri o sul-africano. ele concordou.

- e de entrada? terrine com pistache?, Nestor quis e completou: j'adore.

e eu quis vomitar ali mesmo porque detesto fígado, ainda mais de pato. fui democrático e aceitei. e até comi um pouco quando chegou à mesa trazido pelo garçon, engasgando ao engolir, sorrindo de leve ao tocar a faca na beirada do prato, tomando um cheio gole das uvas importadas pra disfarçar o gosto impregnado na minha boca. um beijo, naquele momento, na boca de Nestor pra dissipar aquele mal estar de fígado - eu queria o fígado de Nestor, e o sumo fermentado das suas uvas, e todo o mau hálito dele espalhado na minha virilha, e sua máscara caída ao lado da minha cama como se estivesse ali esquecida, e o seu cabelo encaracolado sobre meu travesseiro, furta cor de prazer -, e pousei a taça de cristal sobre a toalha de linho branco que cobria a mesa e levantei o guardanapo de pano do meu colo e limpei com cuidado a gota de vinho que caía do meu lábio. falamos de música, e de música passamos a falar de política, nos detemos no assunto política brasileira pós-golpe de 2016.

- quando foi que tu beijou um homem pela primeira vez?, perguntei.

- (riso, um riso que era um risco), o que isso tem a ver com o bozo?

- tudo!, (gargalhada, joguei minha cabeça pra trás).

ele também gargalhou. contou do tesão e do receio em se aproximar da boca de outro homem aos 16 anos de idade. que tinha sido hetero até então. "era outro tempo", ele argumentou, o tiozão de esquerda. ficou em pânico quando o fez, mas repetiu no dia seguinte. e no outro, e repete até hoje. os homens, sempre mais diretos que as mulheres, com menos curvas e menos becos sem saída nos diálogos, com menos simbolismos e com menos duplos sentidos. "uma linguagem mais plana", ele disse, uma condição masculina que possibilitaria relações mais simples, com inícios e desfechos menos dramáticos, menos barrocos. pra Nestor, ser homem era ser menos, era ser minimalista.

- e você?

- viado, sempre fui viado, mas hoje sinto que to velho porque estranho os quia.

- (riso, um riso que era um risco), os quia?, quem são os quia?

- a sopa de letrinhas, os elegêbetêquiamais. é muita gente pra pouco sexo.

houve um tempo em que ser viado era glamouroso, um requinte. sempre foi desconfortável, mas também sempre foi gostoso. era uma marca distintiva: ler livros que poucos liam, ouvir músicas de acordes complexos, vestir roupas coladas no corpo esbelto, empostar a voz de barítono para dizer sagacidades bem-humoradas. já eu sou de uma geração em que ser viado se tornou desculpável por causa da Xuxa. Rainha dos Baixinhos, Lua de Cristal, Super Xuxa Contra o Baixo Astral, Meu Cãozinho Xuxo, as Paquitas (e, mais tarde, os Paquitos [ah, sim, os Paquitos, hm, delícia.], por quem eu aguardava uma noite inteira só pra ligar a tevê pela manhã e vê-los, fingindo pros meus pais que o Praga e o Dengue eram quem me interessavam), tudo fez com que uma geração de guris fosse viada e a culpa recaiu sobre a Globo, não sobre o fato de que ser viado é gostoso, apenas. e teve a Madonna também. sabe, ouvir Madonna no início dos anos 1990 no interior do Rio Grande do Sul, quase fronteira com a Argentina, era uma atitude de guerra. era militância no talo, ativismo no pelo. ser viado era simples: era um guri gostar de outros guris. mas aí veio a internet em linha discada - o som da conexão do modem ainda ecoa na minha cabeça. e vieram as salas de bate-papo do UoL. e vieram os sites de relacionamento. e vieram as webcams, e a internet banda larga. e a aids, que nunca nos deixou. imagine tu que assisti a "Filadélfia" em 1993 e, com 9 anos de idade, saí do cinema com a certeza de ter HIV. não tenho até hoje, mas, está vendo?, a sopa de letrinhas está grudada na história de ser viado. agáivê, elegêbetê, quiamais, a ou p?

- cê tá me perguntando se sou ativo ou passivo?, Nestor me interrompeu.

- tenho outras perguntas pra te fazer que podem ser mais interessantes.

- (riso, um riso que era um risco), eu tenho uma primeiro. posso?

- vá lá, peguei a taça e fui virando um gole demorado de um vinho que grudava na língua, na garganta.

- existe amor em essepê?

- existe amor com emedê, (gargalhada, joguei minha cabeça pra trás ainda segurando a taça).

- (gargalhada, jogou a cabeça pra trás), olha nós com a sopa de letrinhas!

cinco graus Celsius no Mercado das Flores. eram dez da noite. ainda pedimos mais uma garrafa de vinho, o mesmo, pois Nestor havia gostado das uvas do novo mundo. minhas gargalhadas, acredito hoje em retrospecto, me permitiram entrar no labirinto da intimidade de Nestor. ele deve ter sentido que era possível me deixar passar. aceitei uma única entrada sem garantia de saída. lá dentro era cavernoso, escuro, úmido, e às vezes rajavam ventos de furacão; e eu no labirinto de tanga, com uma tocha, ouvindo seus relatos da relação com o pai, com a mãe, com as irmãs (eram 2, uma mais velha e outra mais nova, mas ele só se dava bem mesmo com a mais nova). os homens por quem foi apaixonado; maremotos e tsunamis no labirinto. eu desfilava como uma modelo nas passarelas da semana de moda de Paris por aqueles túneis de Nestor. eu fazia nado sincronizado nas ondas do mar revolto das suas memórias.

- aliás, sou versátil, disse Nestor.

- legal, eu também. mas nem sempre curto penetração.

- nem sempre... como assim? (riso, um riso que era um risco).

- ser viado é mais simples do que dar ou comer. e vai mais além também.

silêncio. nos encaramos ao som do tilintar dos talheres e taças do restaurante, do sussurrar das risadas e conversas dos outros fregueses, do craquelar do frio à meia-noite.

- eu gosto de você.

- eu gosto de ti também, Nestor.

e não há como negar que o prato a se ofertar não o faça salivar.