hoje meu coração disparou PARTE II - alínea d

 [a trilha sonora deste trecho é "absolute beginners", na voz da Carla Bruni.]

nos encontramos na rua Itambé com a rua Alagoas. era manhã de um sábado, quase primavera. a cidade arranhava: muitas pessoas em situação de rua nos pediam dinheiro, comida; uma transexual nos pediu papel higiênico e sabonete, e demos. caminhamos até o Parque Buenos Aires. Nestor e eu nos deitamos no gramado atrás da recém restaurada fonte, na entrada. o sol não esquentava, só iluminava. havia uma claridade naquela manhã que fazia tudo ter um brilho esfumaçado. quando nos deitamos na grama, Nestor se incomodou com o orvalho. eu sorri.

- tiozão de esquerda reclamão, rotulei.

nos demos as mãos. havia pássaros que voavam e cantavam entre as árvores. e pessoas em situação de rua que se escoravam nas grades em torno do Parque. e ônibus que subiam e desciam a Avenida Angélica - "a Terrível", complementava Nestor, porque era onde morava um dos seus ex-namorados com quem não falava mais. essa era uma das passagens do seu labirinto na qual eu adorava entrar: a dos romances do passado. sempre eram becos sem saída, e eu precisava voltar de onde eu viera. eu insistia porque havia algo naquele paredão, o paredão que me impedia de seguir, algo de quente. eu insistia porque sabia estar perto de algo pulsante na história de Nestor. as passagens dos romances do passado sempre me levavam ao paredão quente. Nestor dava sua versão dos primeiros encontros, das primeiras trepadas, dos momentos mais bonitos, dos mais delicados de suas relações prévias. mas cessava de articular palavra sobre o fim, ou os fins. como se houvesse um segredo sobre o término de suas relações, ou vergonha, ou culpa, ou crime. eu notava me aproximar dos paredões do seu labirinto quando ele começava a preencher com silêncio o tempo entre as frases das narrativas sobre suas relações do passado. entre uma e outra havia segundos nos quais ele olhava pro chão ou pro céu. e as pausas aumentavam na medida em que as narrativas se encaminhavam para os últimos dias do convívio de Nestor com os ex-namorados: não mais entre frases, mas entre palavras, que ele passava a escolher com muito cuidado (ou simplesmente lhe faltavam [impossível que lhe faltassem, tão rico que era em verbos e adjetivos, tão cheio de recursos de ironia e deboche.], pois há experiências para as quais não se têm nomes). 

- ... nos vimos num domingo ... eu mandei mensagem ... naquela noite ... senti que tinha algo ... de errado ... por isso, eu acho ... que mandei ... a mensagem ... agora sei que não ... não devia ... ele respondeu ... na ...  segunda-feira ... ... ...

e de repente quase dois minutos de silêncio. me senti constrangido, deitado na grama, com as costas molhadas, achando que havia forçado demais um assunto sobre o qual Nestor não queria falar. eu estava diante do paredão quente, eu ouvia a pulsação, eu sentia as ondas de calor. estendi o braço e toquei com as pontas dos dedos: fiz carinho na sua barba. ele fechou os olhos sem sorrir. um trio de senhorinhas em trajes de atividade física caminhava pelo Parque. romperam nosso silêncio. comentavam com furor que o PT não poderia voltar em 2022. seus cães yorkshire e lhasa-apso latiam, talvez pra discordarem delas (gosto de pensar que todos os cães são de esquerda [eu também.], especialmente os vira-latas). diziam, porém, que do jeito que estava não era possível continuar. que usariam máscaras até a pandemia acabar. que tomariam quantas doses de vacina fossem necessárias, "menos a coronavac", assinalou uma delas. Nestor virou o rosto pra mim e riu:

- essas senhorinhas conservadoras de Higienópolis (risos).

- sim, e as jovenzinhas lacanianas discursando sobre desejo e recalque (risos), eu retruquei.

- que devem ser suas netas, e tem também os netinhos jovenzinhos são-paulinos ou palmeirenses em quem eu gosto de dar uns beijos de vez em quando.

ele sempre escapava. ele sempre tinha um jeito de baixar a cancela, impedir meu fluxo. sempre tinha um modo de dizer que eu coexistia com netinhos jovenzinhos são-paulinos ou palmeirenses de Higienópolis, em quem ele às vezes dava uns beijos. eu era uma mosca rebatendo no vidro da janela; uma perereca grudada em uma janela tentando entrar em um quarto. havia uma blindagem. mas naquele dia, naquela manhã de sábado, ficamos quase 3 horas de mãos dadas, deitados na grama. e almoçamos. e tomamos café com torta de limão e merengue. e voltamos ao minhocão. e tomamos mais café. e escolhemos um restaurante pra janta. e tomamos mais vinho. e rimos e gargalhamos. e nos demos beijos públicos. mesmo quando eu não planejava, era arremessado contra o paredão quente e pulsante de Nestor. eu percorria com destreza seu labirinto; ele permitia que eu ali estivesse; entretanto, a cada encontro e a cada nova passagem eu ficava, em vários momentos, diante do seu paredão. eu recuava. não o acessava em algum lugar, algum lugar dele onde era quente, onde latejava o Nestor namorador, cheio de romances passados. foi assim por meses, mas eu me divertia no labirinto. e achava estar próximo do meio, bem do meio, do meio onde havia vibrações. porque, desde o primeiro dia, houve café, vinho, boa comida. monólogos de Nestor sobre sua relação com a irmã mais nova, que adorava; sobre seu pai, que era um mistério; sobre sua mãe, que era, afinal, mãe, presente como um incômodo às vezes. da irmã mais velha, de quem ele não gostava. e me fascinavam, os monólogos de Nestor. ele parecia declamá-los pra mim, só pra mim. fui me perdendo em seu labirinto de monólogos, vestindo somente tanga e segurando uma tocha, por 4 meses. da última vez que o vi ele vestia uma cueca preta esgarçada, estava parado perto do parapeito da janela assistindo ao por-de-sol. havia chovido o dia todo e, naquele fim de tarde, o sol abria passagem. tínhamos trepado com a chuva batendo na vidraça.

- a minha vida toda poderia ser assim, um por-de-sol depois da chuva, me disse o Nestor de olhos fechados e sem virar o rosto do sol.

eu me arrabatei por aquele homem em quem eu não conseguia entrar. eu apostei, eu topei; de tanga e tocha no seu labirinto escuro. eu disse sim pra um paredão.