[...]a rua. às vezes eu uso fones de ouvido. tenho muita coisa pra atualizar sobre política. às vezes eu ando sem fones pra saber da cidade. gosto de escutar o que está acontecendo, as pessoas, os carros, os ralos. hoje, pela primeira vez em 2 anos e meio de são paulo, passou por mim um caminhão dos bombeiros. vinha gritando há quadras antes de mim, me incomodou, foi muito estridente. mas entendo. é preciso avisar a cidade que pessoas estão morrendo queimadas pra todo mundo ter pesadelos.

eu saí do sacolão campos elíseos e tinha um homem tentando entrar ali. ele estava na porta e gritava que estava com fome, que precisava comer. nos meus próximos passos eu fantasiei duas cenas: a primeira, na qual eu era morto por uma bala perdida - que é a fantasia comum da classe média intelectualmente empobrecida, "as pessoas em situação de rua vão te matar" -, e a segunda, na qual eu dava minhas comprar pra'quele homem e saciava sua fome - que é a fantasia comum da classe média esquerda-cirandista, "eu posso fazer um gesto sincero de reparação". me envergonhei das duas. burguês safado, eu.

não há nada pior que ser um homem gay, cis, branco e solteiro, em são paulo no ano de 2023. é muita culpa.

minha geladeira tem que ficar na minha sala de estar porque não entra na minha cozinha. hoje eu virei esse eletrodoméstico fantástico levemente pra diagonal da parede. ficou perfeito. ah, hoje eu também higienizei a geladeira inteirinha. lembrei da minha mãe contando que, na sua infância, a comida era armazenada em baldes e potes com banha de porco. o avô da minha mãe, que era o prefeito da cidade, comprou a primeira geladeira da cidade, era pequena e precisava ser abastecida de gelo. e o avô da minha mãe também comprou o primeiro rádio da cidade e a primeira tevê. hoje minha mãe participa de grupos de whatsapp bolsonaristas no seu celular.

hoje eu lavei minha máquina de lavar roupas. é preciso lavar o que lava.

eu sinto cheiros. tenho vários perfumes. importados e nacionais. gosto de andar na rua e sentir os cheiros da cidade nas ondas do meu próprio perfume. tem um açougue aqui perto da estação marechal deodoro que me dá ânsia de vômito. é cheiro de carne perto de apodrecer. eu sinto náuseas em açougues. fui comprar uns quilos que carne pra minha dieta low carb no açougue Boi Legal e eu quase vomitei por causa do cheiro. a cidade tem cheiros que eu gosto de descobrir. tem um bueiro aqui perto de casa do qual sai cheiro de barata. barata tem cheiro, e eu sei reconhecer. os homens que amei têm cheiro, e eu sei reconhecer.

desodorante trés de marchand. frasco verde. no rótulo se veem duas adagas em x. é o símbolo para o gouinage, ou luta de espadas. prática sexual entre homens cis que não prevê penetração. era o desodorante que meu irmão usava. ele se matou no dia dos pais de 1988.

se eu fosse atingido por uma bala perdida, eu pediria para não chamar o SAMU.