Hora de Saturno

Paciência, meu eremita. Prudência. Se insistires em tensionar as bordas que te seguram, o grande legislador vai te impor as regras do kharma. Passeio pelas delícias das grandes possibilidades, das grandes tentativas, das grandes viagens. Novos territórios a conquistar, eu, O Conquistador. Mas nessas terras recém descobertas e recém experimentadas, ainda virgens de mais profundas explorações, é necessário fazer leis e obedecê-las. O tempo te traz essa sabedoria, portanto, espere! Eu voltei caminhando, cheirando a cigarro barato, sozinho. Para quem legisla o sinal vermelho em noite de rua deserta? Atravessei, e só meus passos ecoavam de largo a largo na avenida. Era para mim que a sinaleira brilhava. Tentei desesperadamente, numa fúria bastante justificável, rasgar a pele macia para comprovar os músculos rijos... A dureza da carne daquele(s) corpo(s) é tão ultrajante. Penso ser impossível construir para si uma materialidade tão dura, tão espessa, daquelas em que as mordidas não fazem marcas de dentes. Senti na palma das mãos e na ponta dos dedos os tocos dos pêlos recém depilados, o cheiro do perfume amadeirado, o umbigo raso, os peitos salientes, o saco suado. Bebi um pouco, de pouco a muito, de muito a exageradamente. E segui bebendo e tentando, bebendo e tentando, no ritmo da música, do piscar do estrobo, do giro do globo, e nunca chegava, aquilo nunca chegava. Fui me cansando, mas continuava bebendo e tentando, bebendo e tentando. Até que as lembranças mais escurecidas, não pela baixeza moral ou pela vileza estética mas pela simples falta de luz da qual esses lugares freqüentemente se usam, essas lembranças me vieram e me ocuparam, me perturbaram. E no desespero – outro desespero, já o segundo em poucas horas – eu mexi com os braços e com as mãos, balancei o quadril, movi as pernas, um pé tocava o chão enquanto outro se suspendia, encolhi a barriga e sorri. Fechei os olhos. Na minha mente ainda persistiam os tecidos enegrecidos, as luzes opacas e os rostos esfumaçados. Labirintos, salas exíguas iluminadas apenas pela televisão ligada e fora do ar. Cadeiras vazias. Botas, sungas, ereções. Salto-agulha, bico-fino, silicone. Toda doença tem sua delícia, todo crime tem seu deleite. E no retorno, as ruas desertas! Dei-me por conta de que a desolação me acompanhou desde o momento em que me acordei, ou antes, desde o momento em que me deitei ainda na noite anterior. Anexei a desolação a mim como mais um dedo no pé – seis dedos, corpo monstruoso? Anexei o álcool a mim como mais duas medidas na circunferência – setenta centímetros, corpo abjeto? Tive meus momentos de Amy Winehouse, mas é claro que foram sem o glamour do lápis de olho. O chá de boldo que esquenta minha xícara, o microondas que esquenta minha água, o Plasil que impede o meu vômito, a corrida que impede minha gordura, a cama que me traz o sono, a manipulação auto-induzida que me sacia a vontade, o gozo que me proíbe a lágrima: legislações que tutelam os limites de até onde ir e dizem das fronteiras a serem ultrapassadas. Na hora de Saturno, tudo é aprendizado para ser comedido mesmo nas abundâncias.