Cartas a uma jovem bicha – dos chutes, dos socos, dos espancamentos

Essa melodia não acaba
Quando eu resolver parar
De cantar


Pois se gritam contigo, se te chamam de bichinha, de boiola, de viado, vire todo o corpo para o agressor e, num movimento como de onda, empine a bunda, encolha a barriga, estufe o peito, levante a cabeça e jorre na sua cara: “bichinha, não. BICHONA!”.

E se te derem um tapa, tire uma das 12 navalhas que aprendeste a guardar embaixo da tua língua e dispare-as, sempre com essa tua maestria em fazê-las voar sem a ninguém machucar, mas a todos assustar.

E se te derem um soco, arranque teu cinto feito de correntes com um cadeado na ponta, gire-o no ar produzindo aquele som de terror do ferro cortando o ar, gire-o até a tontura e enrosque-o em torno do pescoço do seu agressor. Aperte-o até fazer quase desaparecer sua voz, até quase tirar-lhe a arma que dispara violências, mas não até o fim. Deixe ainda um fiapo de voz para que ele diga: “desculpe-me, sinceramente”.

E se te espancarem, se te chutarem o saco e o estômago, se pularem sobre teu crânio, se te quebrarem os braços e arrancarem os dentes, se te costurarem o cu, se te jogarem óleo fervendo, recupere-se. Cuide-se, trate-se, mas recupere-se. Não morra antes de voltar e provar que o corpo pode ser torturado, que o corpo pode ser produzido na dor, que o corpo pode transformar-se na dor. Recupere-se, volte. Recupere-se do espancamento com carinho pelo seu corpo, pela sua matéria, e volte vestido de lantejoulas, miçangas e canutilhos bordados numa segunda pele.

E se te matarem, não pense que foi aí que tudo se acabou. Porque nós todos vamos continuar a andar por aí, com calças justas e enfiadas na bunda, vamos continuar e ir e vir, beijar e dançar, músicas com brilhos e luzes. E se nos endereçarem palavras de censura ou reprovação, cuspiremos, escarraremos na cara desses. Para provar que não é com a morte que vão te fazer ficar em silêncio. Não é só teu corpo que fala; é tua história, é tua trajetória, são as memórias que tu construíste entre nós que vão se espalhar como vírus (como aquele nosso vírus amigo) e que vão dar consistência para a revanche. O teu rastro ficará conosco, nos servirá de norte.