Emails para uma jovem bicha - a bicha geneticamente modificada

Eu só me dei conta do que eu estava fazendo quando o avião sobrevoava o Paraná. E eu ia fazer o quê lá de cima, me diz? Dizer pra ficar na próxima parada pra eu voltar? Dizer pro piloto abrir a porta porque eu queria descer? Separar um pára-quedas pra eu voltar voando pra Porto Alegre? “Agora chupa que é de uva”, eu pensei.

São Paulo nunca foi uma cidade tranqüila pra mim. Sempre há um drama, ou eu querendo me jogar do quarto do hotel, como aconteceu da penúltima vez, ou eu querendo me prostituir, como foi dessa. Aquela energia competitiva, os desafios que as pessoas se impõem, a peleia pra conseguir um lugar no ônibus, um lugar no metrô e um lugar ao sol me incomodam. Mondo cane é brinquedo de criança perto da opulência com a qual todos tentam te patrolar. Desci no aeroporto e tive de pegar um ônibus, três metrôs e encarar, a pé e com mala, mais uns quinhentos metros de calçada até chegar no “hotel” – muitas aspas nesse “hotel”. No trajeto entre o aeroporto e a estação de metrô, feita num transporte urbano intermunicipal, eu repetia pra dentro de mim mesmo, tal qual mantra, “Jesus me ama, Jesus me ama”, fazendo criar um católico cheio de fé que não existe em nenhuma parte de mim pra me proteger dos perigos. Passei por um, dois presídios. Mais a marginal do Tietê. E entravam pessoas geneticamente modificadas a cada parada, amontoando-se entre as cadeiras e o corredor. As portas mal fechavam, e quando finalmente abriram, fomos todos cuspidos pra fora do ônibus e caímos dentro da selvageria de concreto da terra da garoa.

Aí me joguei na corrente humana daquele mar de gente que se digladia nos metrôs das cidades com mais de quinze milhões de habitantes. Mas eu queria poder parar pra ler as sinalizações, parar pra entender, pra assimilar aquelas informações escritas nas placas acima da minha cabeça que suspendiam setas e palavras indígenas como “Tabaquara”, “Tatuapé”, e eu não conseguia parar porque aquelas pessoas geneticamente modificadas vinham contra mim e a meu favor se chocando contra minha mala e rasgando minha camiseta! Rapidamente me coloquei ao lado de um segurança – eu não sou palhaço – e perguntei como eu fazia pra chegar na avenida Paulista. O olhar de escárnio e de desprezo, de estranhamento e de pilhéria que aquele homem me lançou jamais vai se descolar das minhas lembranças destes tristes e intensos seis dias de suburbano exilado na maior metrópole da América do Sul. Comprado o bilhete, ainda protagonizei uma última cena de comédia para as centenas de indivíduos que por mim passavam: eu tentava fazer com que o bilhete fosse lido pelo sensor magnético da catraca, como se fosse um cartão, ao invés de inseri-lo civilizadamente na reentrância pela qual ele seria ‘comido’ pela máquina. Ali fiquei nessa atividade inútil por uns breves quinze segundos até entender onde de fato eu tinha de colocar o bilhete, tempo suficiente para arrancar risos dos transeuntes – e de mim mesmo, é claro.

Chegando no “hotel”, marchei com quinhentos reais de cara. Pensei, então, que eu poderia economizar na alimentação, uma vez que todos hotéis que conheço – esses sem aspas – têm frigobar nos quartos. Mas esse não tinha. Eu estava na oitava cidade mais cara do mundo, no bairro mais exclusivo do Brasil, sem a menor opção de baratear os custos de uma viagem absurdamente planejada. Pois então: eu peguei um vôo na companhia aérea mais barata do país, pra descer vinte e cinco quilômetros do local da minha hospedagem, peguei ônibus e metrô, andei centenas de metros com minha mala e minha mochila pra chegar num “hotel” que se diz “hotel”, sem dinheiro, sem rímel e sem batom: compreendi que eu era pobre. Eu era uma retirante.

Nos dias seguintes, fui peruar pelos entornos da avenida Paulista. As bichas de lá só existem pelo corpo e para o corpo; tudo o que adorna o corpo, tudo que estiliza o corpo, tudo que se joga sobre o corpo é índice de diferenciação e de hierarquização entre elas. Ciborgues de nosso tempo, iPhones, iPods e notebooks Apple turbinam o corpo porque são suas extensões chiques e caras. Marcas de roupa nacionais são lojões de quinta categoria: D&G é pano de prato pra elas. Não que de fato elas tenham dinheiro, porque sei bem como funciona esse circuito. Elas comem um pé de alface ao longo da semana, elas roubam água dos bebedouros dos shoppings, quando estão a ponto de desmaiar dão uma lambida no sabonete líquido dos banheiros públicos – se houver sabonete – mas compram calças de luxo, tênis da moda e aparelhos eletrônicos importados. Tudo isso num esforço de ser, ser aquilo que se deseja, ser aquilo que se admira, ser aquilo que racional e matematicamente não era possível ser. Não acho que é uma fachada, não acho que elas aparentam ser o que não são. Penso que elas são. Não há mentira nessas estratégias, não há ocultação ou falsidade. Elas são sinceras, são honestas, porque elas são aquilo que elas podem ser. Eu, e somente eu, era a bicha geneticamente modificada ali.
CONTINUA........