Te mando um beijo

O sino da igreja mais próxima badalou: dezessete horas e trinta minutos de domingo. Eu poderia te mandar um beijo de onde eu estou, poderia ir ao teu encontro, mas eu não quero. Eu sinto muito ódio muito freqüentemente, raiva mesmo, vontade de me demitir dos meus projetos. Vontade de mandar um beijo para quem eu desprezo. Sinto raiva, uma raiva ruim e pegajosa, vontade de abandonar esse caminho e essa trilha na mata fechada que abri a facão.

Tem vezes que leio deitado na cama, só com a luz da cabeceira acesa, me dá uma tranqüilidade ao ver o apartamento todo escuro e só uma luz fraca iluminando meu quarto... E quando eu termino de ler eu me cubro e olho pras paredes do meu quarto, pras minhas roupas na estante e para o computador desligado, fico ali observando esse espaço que habito, que faço meu e que se faz eu mesmo: eu também sou minha própria casa. Aí eu espero o sono vir, e quando eu penso que ele quase chega desligo a luz. Mas tenho estado assustado com um barulho estranho que entra pela janela, sempre logo depois de eu desligar a luz de cabeceira, um som de balanço de praça que vai-e-vem como se houvesse alguém se balançando nele, o som é um ruído de correntes que vão-e-vêm. Será que tem uma criança, alguém sei lá quem, que se balança aqui perto de casa? Só eu escuto o ruído? Essa pessoa se balança até a hora de eu dormir, sempre à noite.

Há também outros sons, e uns cheiros, que escuto e que sinto. Sinto cheiros pelo corredor, um cheiro que não é nem ruim e nem bom, mas é um cheiro que sinto até eu entrar na porta de casa. Hoje quando eu entrei aqui no prédio senti um cheiro forte e horroroso, não se de onde vinha e não sei se ainda está lá, e lembrei de mim mesmo! O cheiro me fez lembrar de mim mesmo, não porque eu cheiro daquele jeito, mas porque... de alguma forma associei a impressão desagradável de senti-lo com uma imagem minha caminhando na rua com o cenho franzido.

Há cheiros que nos lembram e que nos constroem imagens. Senti raiva ontem, muita raiva, por causa dos cheiros e das imagens que senti e que vi. Odeio tanto isso tudo, me sentei numa mesa e bebi tão-somente uma garrafa de Original para não dizer que estava totalmente desacompanhado. Estou com os comprovantes de pagamento à vista no débito aqui na minha frente: chegada à 00:24, saída à 1:32. O cheiro de cigarro envelhecido e fumado às pressas, misturado às solas de adidas, nike e all star molhadas se cruzam e produzem náuseas em quem não adere com força ao pó, aos líquidos e aos comprimidos. Sentei à mesa e observei um rapaz acender o cigarro que ele fumou em menos de três minutos, o guri foi bonito quando a chama do isqueiro iluminou seu rosto enquanto ele inspirava o primeiro vento de nicotina e alcatrão ao fazer da mão esquerda uma concha sobre a ponta do cigarro. Bela luz do fogo do isqueiro que o fazia tão carente e tão disponível.

Mas odiei mesmo assim aquela fumaça e aquela imagem. A paisagem na qual estavam todos emoldurados cheirava mal. O que mais me incomoda é o fato de eu não saber onde pôr as mãos ou o que fazer com elas, e minhas mãos são grandes com dedos longos: se eu as deixo à mostra elas chamam muito a atenção e se eu as escondo elas também chamam a atenção porque me faltam, porque pareço amputado delas, porque meu corpo não é o integral. Mas nunca um corpo é um corpo integral, não é mesmo? Sempre escondemos alguma parte nossa que não nos permitem mostrar ou que não queremos entregar. Camisetas, cuecas, meias deixaram, entretanto, de ser peças que escondem os corpos para ser peças que promovem os corpos: camisetas osklen, cuecas CK, meias importadas (há grife para meias?). Mandei um beijo para quem odeio, sempre mando. Ele, desaforado, se deitou no meu colo, só de sunga e botas, e eu deslizei firmemente minha mão pelo seu corpo que quase esmagava minhas pernas de tão pesado de carnes e pêlos. O cheiro dele que se impregnou em mim, esse eu não odeio, mas mesmo assim beijei e mordi seu mamilo direito. Acho que o odeio de alguma forma. Na porta de saída ele já estava vestido decentemente e nos tratamos como desconhecidos, afinal de contas eu apalpei o personagem que ele encena no palco e não o homem remelento e com mau hálito que provavelmente ele acorda todo o dia. Deixei que ele fosse embora e guardei comigo só a sensação de pegar em suas pernas peludas, só o peso sobre meu colo, só o cheiro de suor. Nem seu sorriso, nem uma palavra de afeto me faria mudar de idéia.