Rostos


B assumiu-se como um corpo dócil, mas não se preocupou em deliciar-se com a dor toda de ser o segundo – depois do A. B assumiu-se naquele momento como corpo dócil, como corpo disciplinarizado e como corpo controlado. Ele não sente dor, ou dúvida, ou debilidade; ele sente apenas confortabilidade, que é de terceira ordem. Imediatamente assumiu-se como um ‘escolhido’, isso porque sua vida quase lhe foi roubada num desentendimento de cores entre o verde e o vermelho. Bacia quebrada, hemorragia arterial, coma, experiência de quase-morte, retorno, re-habilitação, re-inserção, re-humanização. Ouro? Nem tanto. Algumas vezes prata, em outras nem isso. Todo o esforço que fizera em ser aceito e ser admirado era acometido por momentos em que se emperrava na insegurança de um colega ou no excessivo egocentrismo de outro. De toda forma, ali estava com um quarto de século de corpo esguio, com quase dois metros de altura, vários pêlos pelas pernas, alguns na altura do umbigo e peito. Barba cerrada. Um quarto de século de dois por cento de gordura. Um quarto de século de corpo de sucesso? Nem tanto. Articulações comprometidas, comprimento que não cabia em nenhuma cama, calças que não cobriam suas pernas, tênis que lhe apertavam os dedos... a dor e a delícia de pertencer a este mundo depois de ter perdido qualquer referência daqueles que o puseram nele. Morreram numa explosão triste, fogo consumindo o metal, metal se confundindo com a carne, carne irreconhecível entre mais de cem corpos carbonizados num churrasco macabro. Mais uma vez o corpo! O corpo que lhe fugira quando rolou pelo asfalto; que lhe faltou quando vagou pelos corredores da UTI; que era seu instrumento de trabalho para saltar, chutar, parar, gritar; que lhe guardava prazeres inomináveis, porém belíssimos, com um outro colega B que insistia em afundar um círculo de ouro vazado no corpo – não o outro círculo de ouro recheado que ambos perseguiam. E mais uma vez o corpo. O corpo que tinha, que quase morreu, que quase se matou, que quase foi belo, que quase foi ouro, esse corpo que perdeu de onde veio, que não tinha mais pra onde voltar, esse corpo se cansou. A prata foi metal nobre que dialogou com ele – eu trago o mais (des)graçado dos brilhos, com menos graça, porque sou feita do brilho dos teus olhos quando ele te deixa sozinho para adular o círculo de ouro vazado que leva incrustado em seu corpo – e ali se deu por conta que precisava sair do coma mais uma vez. O coma no qual deitara era um imenso rosto, um imenso buraco negro que o capturara. Precisava reinserir-se em outro rosto, sulco de aprisionamento mais raso, em que minimamente pudesse chorar a perda dos seus, chorar a perda do ouro e desejar de forma frenética aquele corpo que carregava um ouro circular. Que rosto, meu deus, poderia conferir-lhe tanta liberdade? Sabia que não havia, sabia que não tinha chance, sabia que o máximo de proveito ele já tinha tirado. A pele lisa, com pêlos nas pernas e logo abaixo do umbigo, a barba, a boca que lhe sugava, as mãos que lhe pressionavam, os olhos que lhe capturavam com rosto! Denunciou para si mesmo a dor de ser e de estar ali naquele momento, trabalhando com seu corpo com afinco e dedicação sem receber o que merecia: nem o metal dourado de forma circular recheado, nem o metal dourado de forma circular vazado. Nem um, nem outro, se pendurou sobre seu corpo. E ele tentou por oito longos anos. Não seria o caso de tentar o coma novamente? Ou de tentar o luto? Nem tanto. Porque nesses dois está guardado o metal negro em forma de cruz. Escolheu ficar vivo, mas com o rosto da derrota: deixou-se capturar pelo buraco negro da prata, encheu a cara de vodka com coca-cola zero, e deu-se por muito feliz. Com um quarto de século de vida, tendo escapado do coma, tendo escapado do luto, tendo escapado do amor, nestas condições o metal dourado de forma circular recheada pesando sobre seu corpo seria um rosto. E o que ele menos queria naquela hora era um rosto para mostrar e um rosto para assumir.