Escolho me deitar

Tens razão, às vezes fica bem difícil.
Hoje eu me dei conta disto enquanto assistia à aula. O rapaz sentado ao meu lado não era o mais bonito, mas eu quis extrair beleza dele. E fiquei quase três horas insinuando meu olhar pelas suas pernas, pelos seus cabelos, tentando fazer brotar dali um sinal – um índice, um aceno – de que não havia nada ali que eu não pudesse encontrar em um outro lugar, até em mim mesmo. Nessa minha pose contemplativa fiquei uma boa parte do tempo, e quando nossos olhares cruzaram, por quatro vezes se cruzaram, eu contei riscando palitinhos na folha em branco até formar um quadrado, eu invariavelmente pulava de sua cabeça à outra, de suas pernas ao chão, de suas mãos à cadeira, de seus cabelos ao ventilador, mas percebia que ele me encarava. Até que num momento ele pôs a mão por dentro do moleton azul-marinho para coçar o peito, e o moleton subiu, e eu me estiquei o máximo que pude para colher o máximo de que eu tinha direito de um mínimo possível de sua barriga. Me deitei naquela barriga, rocei minha barba nos seus pêlos que descem do umbigo, lambi seu umbigo, e imediatamente voltei a mim como se nada – ou tudo – tivesse acontecido. E esse foi o momento glorioso da manhã, quiçá do dia. Eu diria da semana: escolhi me deitar na barriga de um aluno!
E ontem foi um dia desses, bem como tu estás me narrando. Difícil, magoado. Ruidoso e pegajoso, em parte por causa do tempo, em parte por causa do meu tempo. Perceber que escolhas antigas talvez não tenham sido as mais corretas... Ou, pior ainda, perceber que as escolhas antigas foram as mais corretas porque, exatamente, o outro é que tinha razão: eu ainda não estou preparado para aquilo. Voltei pra casa com uma vontade de tirar a roupa, o blusão, a camisa, a calça, os tênis, as meias, as cuecas e seguir tirando tudo: a pele, o fígado, o estômago, os músculos das pernas, como naquele videoclipe do Robbie Williams. Mas, na minha pressa em despir meu corpo e em despir-me do meu corpo, imaginei que quando só me restassem ossos, ou apenas um osso para arrancar fora de mim, ainda assim haveria uma coisa qualquer que deveria estar desde já arrancada e que ainda não está. Tem um mofo, um bolor que não consigo limpar. É um lugar que não pega sol – e não é esse que tu estás pensando, porque esse vê a luz mais que outros. É um lugar sobre o qual eu não consigo lançar luz, que eu não consigo iluminar, que eu não consigo ver. Mas que está ali de todo modo, faz sua moradia nômade nas sombras que se formam no jogo de luz e escuridão.
Eu cheguei do trabalho e tinha que ir pra academia. Mas decidi que não iria, que ficaria e tomaria uma xícara de café bem gelado e bem doce. Decidi transformar o mofo em meu aliado, me juntei a ele: escolhi me deitar pra ficar mofando neste dia úmido. Talvez depois eu me levante e vá cortar o cabelo, que está péssimo. Por agora eu quero me deitar e mofar um pouco, só um pouco, para eu sentir a delícia de estar na sombra, invisível.