O chão debaixo dos meus pés


Senti prazer em pisar na calçada cheia de sulcos, nas pedras desorganizadas, nas lajotas em desnível. Até mesmo quando minha cara bateu forte contra o chão, até mesmo aí eu gostei. Tropecei, caí. Mas era o chão, dali eu não passei. Machuquei um pouco o rosto, esfolei de leve minha testa. Levantei e procurei com desespero alguém familiar, alguém pra me dizer que ‘tudo vai dar certo’. E achei, me senti seguro por saber que eu tinha com quem contar. Continuei andando pelo chão cheio de buracos, e uns olhos que de mim se desviaram, umas palavras que saíram pela minha tangente, uns corpos que se insinuaram para longe, tudo me fez sentir triste. E como somos tristes! Fingimentos bem posados podem ser elegantes, mas não são inofensivos. O chão debaixo dos meus pés não era o limite. Há horas em que nem o chão segura, em que não é dele que decolamos, e nessas horas tudo é um colete salva-vidas em potencial para a gente não se afogar no fluxo do medo: uma senhora que me pede dinheiro para poder voltar pra casa, uma outra que lê “Os amores de Sabrina” do meu lado. Um rapaz que se exibe no banheiro público. Um taxista gaúcho morando em Florianópolis. O ônibus que viaja numa velocidade muito alta, o chão da estrada, um noite de pesadelo que não terminou nunca. A minha casa, ahh, eu queria estar de volta na minha casa. Queria trancar a porta e fingir que nada daquilo aconteceu: um fingimento bem posado e bem cruel.