Revirando os cantos

[...] e não tive grande problema em acordar e abrir a porta pros caras. Eram três, um mais lindo que o outro, um mais trabalhador-braçal que o outro. Uma manhã bem atípica: há meses não acordo com três belos homens na minha casa - independente do que estão fazendo aqui. Não ficaram muito tempo - nenhum belo homem fica aqui por muito tempo - só fizeram seu trabalho e foram alegrar outra casa, de outro homem solitário, de uma viúva, não sei. Daí eu voltei e olhei bem na frente da minha porta de entrada aquelas revistas empilhadas. E abri uma gaveta, só uma, pra ver se achava um texto... não, não era um texto, era a letra de uma música, de uma ária, na verdade, em francês. Ópera do século XIX. Encenada mais de 1.478 vezes no La Scala. De uma mulher que morre no final. E não é que achei?!? Cruzes, achei! Rasguei na hora! E fui rasgando, rasgando. A Bíblia Sagrada, rasguei todinha. Uma delícia de rasgar aquele papel-seda, ver aquelas letrinhas pela metade, empilhadinhas pra ir pro lixo. E rasguei também umas fotos, umas cartas e uns cartões "de amor". É, pessoas já me mandaram algumas cartas de amor. Fui rasgando essas coisas todas que já passaram, que de certa forma contribuíram pra eu estar aqui hoje, mas que não fazem mais nada agora do que ocupar os cantos das minhas gavetas. E eu preciso dos cantos das gavetas pra guardar essas lembranças pequenas: uma frase, um perfume, um acorde. A cena de um clipe. Rasguei tudo: agendas de quando eu tinha quatorze anos. Aquilo já não é mais eu, entende? Na minha agenda mais antiga, uma moradora: uma traça imensa de gorda! Bom, todo o drama que eu insistia em escrever naquelas páginas fizeram bem a alguém. A não ser a traça, mas nada de vivo por ali, nem nas fotografias, nem nos textos, nas ideias dos textos, na caneta grudada junta à agenda não havia mais tinta. As únicas partes que fiz questão de rasgar em miúdos foram os "dados pessoais" das agendas - com número de conta bancária, passaporte, endereço, tipo sanguineo - e as cartas de amor. Ah, e a Bíblia, que para alguns não deixa de ser também uma carta de amor. Cansei o dedo de rasgar. Recuperei muitos cantos em várias gavetas, muitos ângulos retos onde posso acomodar mais sussuros ditos à beira da praia, se houver. Vou ganhar um sofá novo. Pensando bem, acho que até da minha coleção de rolhas eu vou me desfazer, pois rolhas não afundam. Elas nunca afundam, ficam boiando, não morrem afogadas. É o símbolo de algo que resiste. Não sei se quero tanta resistência, às vezes vale mais a pena se deixar ir no fluxo, no movimento. Mas com essa história toda eu vou ter que comprar mais saco pra lixo porque usei o último, imagina [...]