Cartas a uma jovem bicha - Por que odiar a chuva?

Tu me escreve dizendo “fez tempo ruim as férias inteiras” e termina a argumentação das razões do tempo ruim afirmando que “a chuva me obrigou a ficar trancado no apartamento, no máximo ir até um shopping”. “Não deu praia”, tu ainda comenta, “voltei com a pele tão branca quanto a que eu tinha quando saí”.

Eu não entendo bem como se consolidou essa nossa ideia – minha, tua, de todos nós – que ‘tempo ruim’ é sinônimo de chuva. Mas não vou dizer aqui que tempo ruim, pra mim, é tempo quente com sol bombando câncer de pele – na minha, na tua, na de todos nós – porque isso é óbvio, tu já devia saber. O que me irrita é outra coisa: é a culpa que tu põe na chuva por tu ter sido obrigado a te trancafiar a sós com tua interioridade. Não é isso que tu vive me dizendo que tem? Uma interioridade? (se ainda fossem várias, mas nem... aff!) Não é pra isso que tu pratica yoga, que tu te submete à terapia? “Pra trabalhar e fortalecer minha interioridade”, tu me diz, como se ela, a interioridade, fosse algo que já estava lá dentro desde sempre, toda dada de antemão, apenas enfraquecida por um pé na bunda domingueiro ou flácida por uma tentativa de conquista mal sucedida. “Equilibrar meu eu interior” é o mantra. Ou pior: “encontrar meu eu interior”. Pois certamente ele, o teu eu interior, saiu correndo quando te ouviu dizer que odeia gente gorda, descompensou-se quando tu sentiu vergonha em ser pobre.

Tudo bem, vá lá, tenha uma interioridade se é isso que tu tanto quer. Pra quais lados ela aponta? Ela pesa pra dentro, tensiona pro interior como uma dobra? Sim, mas somente com uma condição: esse teu eu interior vai tão mais dentro quanto puder se projetar e se visibilizar pra fora. Não é pra isso que tu pratica yoga? Pra deixar o corpo rijo, duro, saudável, com uma carne feliz e natural, super geração saúde. Trabalhar, fortalecer, equilibrar e encontrar a interioridade, sim, mas só e exclusivamente se ela puder ser jogada pra fora, projetada na pele. Agora começo a entender os motivos pelos quais tu não admite perder uma sessão de musculação, sob pena de terríveis ressacas morais, mas falta à sessão de terapia com uma displicência que não te incomoda tanto. A terapia não tem efeitos diretos, visíveis e comprováveis pelos sentidos tão irrefutavelmente quanto a prática do yoga e da musculação. “Correr é um jeito de fazer terapia, faço terapia comigo mesmo”, tu retruca. Concordo em parte justamente por entender tua lógica: correr é terapia pra quem acredita que a gordura é uma neurose, e só faz ‘terapia consigo mesmo’ quem acredita que lá dentro de si há um eu interior para o diálogo. Parabéns, a esquizofrenia agora tem uma utilidade.

Então ficou trancado no apartamento por causa da chuva. Junto com teu eu interior? Qual o problema, não entendo. Teu eu interior não está sarado o bastante? Ou está gordo – ahh, deve estar gordo. E já que tu detesta gente gorda, ele fugiu de ti. E vai ver é por isso que tu pratica yoga, pra encontrá-lo. Mas, na falta do instrutor, compreendo bem teu ímpeto de ir ao shopping. Talvez tua interioridade estivesse fazendo umas compras, gastando o limite de cartão de crédito de papai? Não. Porque tua interioridade talvez seja pobre – além de gorda. Segundo motivo pelo qual ela precisa ser fortalecida.

E tu ainda queria ir à praia. Queria, mesmo mesmo, desfilar de sunga? Não entendo o porquê. Pobre e gordo, teu eu interior voltaria de férias aos frangalhos, pois muito provavelmente encontraria os eus interiores dos outros – como tu – que não o perdoariam por ser pobre e gordo, só pra citar duas características que te incomodam. Debaixo do sol, mais nus do que o necessário, ou pelo menos mais nus do que no resto do ano, os eus interiores dos outros são mais cruéis. Quanto menos roupa, mais perversos. É muita interioridade pra pouco ‘dentro’, sabes.

Eu reescreveria isso que tu me mandaste. Diria que fez um tempo ótimo nas tuas férias, que a chuva foi linda e fértil. Que tu fez uma viagem dentro de si que te rendeu vários insights, fincando tua interioridade – com raízes, tronco grosso e copa frondosa – lá no fundo do teu ser. E me daria por muito satisfeito ao argumentar, simplesmente, que tu voltou com a pele mais branca do que quando saiu porque usou filtro solar fator 50, o que te deu uns 2 anos a mais sem rugas quando tu chegar lá pelos 35. Acredite: esse teu eu interior vai suplicar por mais 2 anos sem rugas quando tu – quando vocês dois, tu e teu eu interior – chegar lá.