Cartas a uma jovem bicha - Desobedeça

Escolhi um evento ao acaso do dia de hoje. Uma imagem que se fixou na minha memória e a partir dela voltei a percorrer os caminhos que me fizeram lembrar. Não me interessei tanto por essa genealogia quanto me fascinou a função da memória – daquilo que lembramos e daquilo que somos lembrados, o tempo todo, desde todos os aspectos – para que a gente possa dizer “eu sou eu” a qualquer momento que sejamos questionados nesse sentido.

Por que eu sou eu, ou como alguém se torna (e continua sendo) o que é são perguntas que grandes filósofos já se fizeram, inclusive já sugeriram respostas ou pelo menos indicaram bons indícios para pensarmos sobre elas. Não tenho a pretensão de tentar responder essas perguntas novamente, tampouco fico envaidecido de suscitá-las. O que me interessa nelas, o que me interessou na imagem que se fixou na minha memória, é que lembrar de nós ontem é um exercício tão fundamental para nós vivermos quanto respirar. Respirar nos mantêm vivos, mas lembrarmos de nós ontem nos mantêm vivos ainda enquanto aquilo que somos. Pois, ora, posso estar vivo mesmo não sendo mais quem eu era - doce delícia de quem pode esquecer de si mesmo.

O problema é que esquecemos, por angústia ou falta de atenção, muitas imagens, sons, sentimentos, cheios e sensações. Perdemos muita coisa, há memórias que vão ficando no caminho. E não é que há vezes em que somos – eu pelo menos sou – surpreendidos por essas memórias que ficaram lá atrás e que, não obstante, ainda dizem que nós somos quem somos hoje? E foi essa imagem que me tomou. Num assombro, num assalto, num arroubo de lucidez de algo que aconteceu há... quatorze anos. Senti muita vergonha desta minha lembrança, vergonha de ter feito, de ter dito. Eu peguei o telefone, liguei e disse um monte de bobagens, mas não liguei pra falar, liguei pra ser ouvido. Porque o que eu mais queria naquele momento era ser notado, ser visto. E fui, de fato, mas com um reticente desprezo. São esses três sentimentos que hoje ainda restam em mim, lá na minha camada mais sedimentada, me compondo de algum modo: a vergonha, o desprezo e a vaidade.

Corri vinte minutos na esteira hoje, ao cabo de uma hora e meia na academia. Por isso fui elogiado. Minha relação com o meu corpo – com este meu corpo, não com os outros mais que tive – é tal que condensa a vergonha, o desprezo e a vaidade. Talvez seja por este motivo que me interesse tanto em estudá-lo, em analisá-lo: quero sugerir pra mim mesmo saídas deste tríplice labirinto. Não é exatamente terapêutico o estudo que faço, não quero simplesmente analisar a mim mesmo, como numa relação narcisicamente insularizada. Como a vergonha, o desprezo e a vaidade se inseriram tão fortemente, cromadas, àquilo que sou? Como elas se acomodaram no meu corpo?

Pra escapar desse círculo, me proponho uma espiral. O centro do círculo ou o ponto de equilíbrio da espiral seria aquilo que nós somos, o que pensamos que somos, o que nos tornamos. Através do ato de escrever eu acho que me desobedeço, me desautorizo, me torno ilegal perante as leis que eu criei. Acabo me tornando um criminoso porque nessa desobediência espiralada de escrever, nesse exercício de ir lá pra minhas bordas, acabo pulando pra uma outra dimensão da trajetória que me fez chegar onde estou. É isso que é a espiral: não é fazer o mesmo caminho, nas exatas coordenadas de antes (isso é o círculo), mas é fazer e refazer o caminho em outra dimensão, num outro fluxo, desde referências outras, diferentes das de antes. Não apenas subindo ou descendo, mas subindo e descendo e pra direita e pra esquerda e pra frente e pra trás e em curva e em ziguezague. O pulo de uma dimensão para outra do círculo, constituindo, então, uma espiral, talvez possa acontecer exatamente quando nos vêm à memória essas lembranças que não são lembradas por muito tempo, que estrategicamente estão postas de lado, fora do caminho do círculo, que nos provocam vergonha (ou medo, ou exasperação, ou dúvida). Elas desobedecem e violam o caminho do círculo porque o redimensionam. Considerá-las pertinentes e aceitá-las (ou seja, refletir sobre sua vergonha, sobre seu desprezo, sobre sua vaidade no meu caso) é uma relação ética consigo porque podem – ou não – espiralar o angustiante círculo ensimesmado no qual frequentemente nos colocamos.