Cabelos

Meus cabelos de Bozo foram a melhor parte daquela noite. Nem a quebra do jejum de álcool foi tão maravilhosa quanto a horizontalidade dos pelos da minha cabeça. Eu dancei, suei, bebi, gargalhei, os fios ficaram úmidos e incharam pros lados. Cabelo de Bozo.

Eu achava que não fosse conseguir, mas eu consegui. Se há dez anos alguém me dissesse que eu estaria onde estou hoje, eu não acreditaria. Ou melhor, acreditaria sim, e ficaria orgulhoso de mim. Hoje, entretanto, não me orgulho tanto quanto eu supostamente me orgulharia há dez anos. E continuo não acreditando. Chego do trabalho sempre por volta das cinco e meia da tarde, dá tempo de ir ao supermercado pra comprar algo pra janta sem me deter no congestionamento de carrinhos e de cestinhas. Um horário civilizado. Chegando cedo do trabalho em casa, em tempos de horário de verão, dá até pra fazer um chimarrão e ir sentar na grama do parque pra pegar os últimos e menos quentes raios de sol. Dá pra voltar pra casa, jantar, estudar, ouvir música, e nos dias marcados na minha agenda eu consigo inclusive assistir aos meus seriados favoritos na TV. Isso porque eu tenho uma grade de canais bem completa, em que são exibidos muitos filmes de razoável qualidade. Se mesmo assim eu não ficar satisfeito, posso escolher algum filme entre os cinquenta e três DVD’s que eu comprei e posso tomar banho ouvindo Debussy ou Madonna. Hoje eu posso me deitar lá pelas onze da noite e ler um livro, de literatura ou filosofia, porque comprei vários livros ao longo dos anos. Mas a melhor parte disso é que além de poder comprá-los, eu posso também lê-los e entendê-los. Eu posso compreendê-los. E posso dormir numa cama king size com quatro travesseiros, acordar relativamente tarde na manhã seguinte e ir pra academia. Afinal, estou matriculado na academia que eu desejei frequentar por anos e anos, mas nunca tinha dinheiro pra isso. Minha vida é boa, mas apenas boa.

E tenho vários amigos, inúmeros, que se encaixam nas mais variadas programações. Posso agendar muitos e diferentes eventos com eles. Meus pais estão vivos. Eu moro sozinho, minha saúde vai bastante bem. E mesmo assim eu tenho cabelo de Bozo.

Não me orgulho, não acho que isso é o bastante. Pode ser ambição demais ou ingratidão com minha trajetória. Eu às vezes bloqueio o medo e consigo me movimentar melhor. Às vezes eu não consigo. Às vezes eu sequer respiro, nem me olho no espelho. Outras vezes passo horas procurando cravos na minha pele, machucando-a. Quase toda a noite eu acordo, ainda um pouco sonhando, e sinto que há alguém no meu quarto ali sentado na minha escrivaninha me observando. Sinto um certo pavor, puxo o lençol e me cubro. Nas noites de verão isso se traduz num verdadeiro inferno porque sinto muito calor, mas o pavor de haver alguém me observando enquanto durmo é maior. E puxo o lençol. Nas noites de inverno não sofro tanto. Mas nas noites de verão eu sinto medo de acordar e me saber observado. E puxo o lençol. Como se um lençol fosse me proteger de qualquer ameaça.

E quando acordo pela manhã, antes de ir à academia, tenho que molhar meu cabelo. Porque ele é muito ondulado, como se o torvelinho de ideias que guardo na minha cabeça fosse o responsável por encrespar meu mar capilar. Meu mar capilar revolto. Acho que meu cabelo de Bozo é assim porque tenho muitas ideias na cabeça. Talvez se eu tivesse cabelo liso eu desejaria ser mais criativo.