"É uma forma de fazer nós em fios muito retilíneos"

- Mas vocês estão solteiros, namorando, casados? Houve a consumação do matrimônio? Ou o mundo está diante de mais uma, abre aspas, amizade colorida, fecha aspas?

- Não, nunca houve nenhuma consumação em minha vida (risos). Atribuir nomes e status àquilo que emerge e que constitui as relações entre as pessoas, sobretudo delas com elas próprias, é sempre uma inglória. É sempre uma mesquinhez, uma pequena vileza que cometemos: dar um substantivo é fechar uma série de portas, desacelerar as turbinas, cobrir com verniz uma superfície porosa que poderia conectar-se com tantas outras... Mas vá lá, vamos usar uma palavra que defina isso que temos entre nós, mas que também deslize o suficiente a ponto de permitir apenas o mínimo possível de rigidez. O que nós temos, em relação a nós próprios e em relação a nós dois, em relação ao mundo, é exatamente isso: relações. Múltiplas, infindáveis, mutantes, amorfas, disformes, polivalentes, ambíguas, duvidosas, perigosas, secretas, silenciosas relações. Ache os adjetivos que quiser para abrilhantar o substantivo. O que temos hoje não é nada de concreto, não é nenhum tipo de alicerce. É puro gás circulando, ora mais denso e perfumado, ora mais rarefeito e putrefato. Antes eu dizia que era ele quem precisava de mais matéria, de mais solidez e de mais definições do que eu para poder lidar com isso tudo que estamos vivendo. Obviamente esta foi mais uma das minhas perversas artimanhas em jogar a responsabilidade da insegurança no outro, de modo a afastar de mim qualquer dúvida sobre meu volume subjetivo. Sou eu que preciso do peso das memórias, sou eu quem investiga seu passado e o reconstitui à minha imagem e semelhança, impondo-lhe verdades ainda insuspeitas e sentimentos supostamente nunca sentidos mas ali latentes em sua alma. Eu digo que eu sei, que está claro para mim, que se ele ainda não se apercebeu da paixão recolhida que o consome é porque lhe falta maturidade para enxergar e para sentir. Eu crio culpas e decalco-as de mim, grudo-as nas paredes dele e rio disso. Atribuo sensações e desejos, atribuo vontades aos rodopios de seu olhos. Que caminhos no breu o conduziram até aquele brilho no olhar refletido no corpo seco de gorduras, no sorriso branco, no rosto quadrado, no peito musculoso, no braço rijo... Que faz ele comigo, então; que relação móvel ele estabelece com alguém que em nada se associa àquilo que ele viveu, com alguém que não entende sua história nem tudo e todos que dão sentido a essa história, com alguém cujas direções dos caminhos são tão obtusas quanto são estreitas suas passagens, cujo corpo é tão amorfo e disforme quanto a própria relação construída entre ambos? Eu sigo impondo minhas verdades a essa relação e vou constituindo um núcleo duro e sedimentado de emoções nunca experimentadas – nem por mim, nem por ele. Em outras palavras, é uma forma de fazer nós em fios muito retilíneos (risos). (Silêncio) Sentimos muita vergonha às vezes (silêncio). Sentimos muita raiva dessas incompatibilidades todas, desses desencontros em choque, elétricos, explosivos (silêncio). Sentimos tristeza e desolação pelo nosso estado de exílio, abre aspas, estrangeiros um na vida e no corpo do outro, fecha aspas. Soa como sendo uma relação trágica, mas é bastante gostosa quando gargalhamos um do outro, dessas cenas dramáticas e das reações exageradas que temos (risos).