Retrospectiva da década

Acordei com o ronco do meu estômago. Não era apenas fome, mas saudade e nostalgia. Doíam um pouco minhas amígdalas, talvez por causa de uma recente infecção que poderia mudar toda minha vida. Era sempre assim: eu criava doenças pro meu corpo, elegia momentos infecciosos, de desprevenção, mergulhava nesses líquidos e secreções fantasiosas cheias de vírus de todas as cepas e densidades. Saía delas renovado, como que vacinado contra qualquer sanidade. Eu seria sempre um doente em potencial, um hipocondríaco. Mas será mesmo que esse é só mais um caso de hipocondria, ou será algo mais perverso e insidioso que me faz crer que se colocam uma ou outra doenças no meu destino como inexoráveis, necessárias, somente por eu ser quem eu sou?
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Era fim de ano, fim de década. Fiz uma eletrizante e ultrarrápida retrospectiva, não deu outra: me surpreendi com o caminho, com as esquinas dobradas, com os esforços e com os perigos. Acho que, dez anos atrás, se tivessem me apresentado numa bola de cristal o que e como eu sou hoje, eu-ontem se apaixonaria por eu-hoje. Nada narcísico; é que hoje eu sou algo tão diferente, tão inusitado, tão inesperado e inimaginável que eu-ontem se fascinaria com facilidade por eu-hoje (é preciso considerar que o eu-ontem era ansioso e inexperiente, caía facilmente em ciladas e engodos. Talvez eu, eu-agora, esteja projetando nele, no eu-ontem, o que eu-hoje sente por ele próprio: paixão avassaladora). Fui muito mais longe do que eu previra, me espraiei muito mais pros lados, alarguei minhas margens, cresci e adensei. Nunca consegui me ver no futuro, sempre programei meus objetivos a médio prazo. Como um touro, pesado e preguiçoso, fui dando um passo de cada vez – mas quando dava, dava com segurança e vontade. Não me vejo daqui dez anos, não me projeto pro futuro. Talvez essa dificuldade seja um pouco o produto da incapacidade que tenho de me ver como sou hoje. É raro eu parar pra pensar nisso. Eu só vou indo, como touro, aos poucos e com segurança, fazendo minhas medições cuidadosas pra não descansar demais, nem ir muito rápido. Eu daqui dez anos é uma bruma, uma imagem desfocada, um brilho fosco; ainda bem que já consigo me conceber, ao menos, como um brilho. Eis minha principal mudança de dez anos atrás.