Retrospectiva da década - continua

Toda a vez que pego um ônibus para fazer alguma viagem intermunicipal eu desejo muito intensamente que eu sente nas poltronas mais afastadas, lá nas últimas já perto do fundo, que ninguém divida o assento comigo e que logo cruzando o corredor do veículo, numa distância não maior que dois braços, um homem bem sexy e safado se sente ali. Nas minhas fantasias, é interessante a impossibilidade do contato físico e o total voyeurismo da cena: os nossos olhos (os meus e os desse homem fictício que adquire tantas feições e carnes quanto minha imaginação é capaz de produzir) se tocam desde a espera pelo ônibus, ainda em terra, seguem durante o rápido embarque e se enroscam quando a viagem começa, numa lascívia à moda de Sade. Suamos sexo e prazer; sexo e desejo, lânguidos. Mas hoje, justamente hoje, peguei o ônibus e me sentei ao lado de uma senhora com sua neta. Esse é pior pesadelo pelo qual eu sempre nutri aversão de um dia viver. E vivi hoje. Mal o ônibus deu o arranque, eu me mudei para uma das 4 poltronas vagas. Amaldiçoei quem está no além escrevendo meu destino. Duas horas depois, já chegado ao meu destino, a surpresa: o homem com quem eu sempre fantasiei viajar junto no ônibus, o homem que construí pelo por pelo, dente por dente, músculo por músculo, sorriso por sorriso na minha imaginação depravada, esse homem já estava aqui me esperando, morando no edifício em frente. Ele surgiu pela porta da frente sem fazer barulho, foi entrando, e me surpreendeu tanto quanto pareceu ser surpreendido por mim: ele arregalou os olhos quando me viu e, em seguida, riu um riso malicioso ao ver meu corpo se erguendo logo atrás da bancada, ali onde ele não me suspeitava. Estendeu sua mão, enorme e com dedos grossos, gesto ao qual eu retribuí com a minha mão também grande, mas com dedos longos e finos: “Olá, prazer, eu sou o ...”. Apertaram-se as nossas mãos, riram-se as nossas bocas, lamberam-se as nossas fantasias. Será pouco dizer que ele se encaixa sem vazios ou apertos, com sua voz e com sua cor, nessa figura estreita e sufocante que minha imaginação criou? Porque se criei esse homem com tantos detalhes que não vem ao caso fazer desfilarem aqui, com tantas tessituras e sabores, com uma história e com um corpo tão específicos (e sempre sem rosto), fiz isso para que esse homem jamais existisse senão no interior mesmo das minhas demandas pessoais, como se ele fosse uma espécie de autossabotagem bem peculiar que habitasse minhas sessões de masturbação cotidianas. Mas se, por uma traquinagem daqueles que escrevem meu destino e que eu outrora amaldiçoei, esse homem de repente se exilasse das minhas fantasias e tomasse vida, num átimo; se ele se materializasse com força e opulência entrando silenciosamente pela porta da frente, usando como passaporte de ingresso apenas seu sorriso de dentes ordeiros; se esse homem estendesse sua mão, que é bem como eu a imaginei, para a minha, essa não é uma responsabilidade assustadora para com ele?